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Tradição: tapeçarias feitas de pétalas
2002-05-31 12:03:24

"Palomas", chamava a atenção à criança aquela mãe castelhana, perante um quadro em que duas pombas seguravam uma faixa pelo bico. Milhares de olhos postos no chão multiplicavam o espanto provocado por aqueles três quilómetros de tapeçarias feitas com pétalas de flores, autênticas filigranas vegetais em plena rua.

Moradores de Vila do Conde "esqueceram" o sono e, durante toda a noite ("das 11 da noite às 11 da manhã"), engalanaram a faixa central dos largos e calçadas por onde passava, ao fim da tarde de ontem, a Majestosa Procissão Eucarística do Corpus Cristhi, presidida pelo Arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, que transportaria, sob o pálio, a Santa Custódia, uma jóia de prata maciça, proveniente do Mosteiro de Santa Clara e adornada com 365 preciosas águas marinhas.

Inspirados no rendilhar dos bilros, nos pontos de Arraiolos, nas linhas barrocas da talha dourada da Igreja Matriz, em puras formas geométricas ou nos mais variados arabescos para traçar o padrão, os vilacondenses ainda rematam cada tapete da sua rua com quadros mais elaborados, em que se esmera o requinte dos motivos sacros e profanos, sejam querubins sorridentes ou cálices da Eucaristia, o brazão heráldico da terra ou uma traineira com todas as artes da pesca.

Até o Papa João Paulo II, no seu jeito curvado sobre o bordão de peregrino, foi retratado por aqueles artistas, que ripam funcho e bucho para terem os tons verdes, vão aos campos buscar o amarelo dos pampilos, ganham o resto das cores desfolhando granjas e rosas. E, nalguns casos, para obter outros efeitos, acrescentam cachos de uva e pão de verdade, vieiras de Santiago e outras conchas, mesmo uma ou outra pequena escultura de santo.

Ao longo da manhã, acumulam-se os curiosos, máquinas fotográficas sem poupar nos rolos, câmaras a filmar longas sequências, cavalheiros de gravata e homens com coletes do Coronel Tapioca, roupa de ir à missa e decotes ousados, gangas da moda e jóias de família, palrares galegos e sotaques brasileiros, velhos em cadeiras de rodas e bebés nos seus carrinhos, T-Shirts do Carnaval de Pernambuco e dos Divine Comedy, vestidos da comunhão solene e miúdos com balões, cicloturistas de capacete e cães pela trela, mulheres de medalhas bentas ao peito e adolescentes de piercing no umbigo.

"Desculpe! Olhe aí os pezinhos!", avisa uma das artistas, quando vê sapatos ou sandálias a aproximar-se perigosamente da obra que custou semanas de preparativos e horas a montar, que nem sequer houve ainda tempo de afastar alguns dos moldes, feitos em madeira e latão, da viela contígua. "O melhor é ir buscar uns pregos e uma corda", parece ameaçar a vizinha, perante aquele marulhar de forasteiros, que os tapetes de flores - essa tradição com mais de cem anos para realçar o percurso de uma procissão que tem cinco séculos - só se fazem de quatro em quatro anos. Na Praça da República ou no Cais das Lavadeiras, com mil cuidados de jardineiro diligente, regam-se aqueles tapetes que rivalizam, na delicadeza do desenho e na minúcia do pormenor, com as colchas pendentes das varandas.

E, no entanto, os passos dos irmãos das confrarias e dos escuteiros, dos turiferários que espalham o incenso e dos bombeiros que fazem a guarda de honra ao pálio, dos meninos de anjo e dos músicos da banda, dos muitos clérigos e das autoridades civis, em meia hora de préstico apagarão toda aquela efémera arte.

Fonte DN

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