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Gaudium et Spes: Questões Emergentes
2002-05-14 19:20:29

A Constituição pastoral, “Gaudium et Spes” sobre a Igreja no mundo contemporâneo, é para muitos o documento mais emblemático do Concílio Vaticano II, porque manifesta uma atitude nova da Igreja nas suas relações com o mundo e a “modernidade” que anteriormente e noutro contexto tinha sido rejeitada.


Depois de um proémio e de uma introdução em que indica, em traços rápidos e incisivos, a metodologia e a “condição do homem no mundo actual” (meados da década de sessenta do século XX), apresenta na primeira parte a compreensão do homem e da sociedade em chave teológica e na segunda trata de “alguns problemas mais urgentes”: o matrimónio e a família, a cultura, a vida económico-social, a comunidade política, a paz e a comunidade internacional.
Importa dizer que devido à vastidão e complexidade dos temas tratados, ao facto de não poder ser um documento demasiado extenso na economia dos textos conciliares, e ao longo e até atribulado processo de redacção, detectam-se nela omissões, imperfeições e mesmo sobreposições de perspectivas teológicas nem sempre coerentes. Consideramos particularmente relevantes os seguintes aspectos:

1. A apresentação de uma antropologia de carácter cristocêntrico e pneumatológico, isto é, elaborada a partir de Cristo e da acção do Espírito na história que fundamenta a temática concernente à relação entre a Igreja, a pessoa humana e a sociedade. De entre muitos textos, transcrevemos três: “o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado” (n. 22); “Cristo (...) actua pela força do Espírito Santo no coração dos homens (...); anima, purifica e fortalece também as generosas aspirações que levam a humanidade a tornar a vida mais humana” (n. 38); “o Concílio quer, à luz de Cristo, imagem de Deus invisível e primogénito de toda a criação, dirigir-se a todos para iluminar o mistério do homem e cooperar na solução das principais questões do nosso tempo” (n. 10).

2. A categoria “diálogo” constitui uma das chaves, porventura a principal, da proposta pastoral apresentada. Sem nunca deixar de relevar o que lhe é específico: a revelação divina que deve acolher, aprofundar e propor, na GS salienta-se o desejo de conseguir falar com todos os homens, a relação com as realidades profanas, o reconhecimento da autonomia do humano, a relação entre Cristo, verdade absoluta e universal e a liberdade, situada sempre na história, de cada pessoa singular. Sobressai a importância atribuída aos “sinais dos tempos”: realidades, êxitos, aspirações, projectos da humanidade... Embora não tendo necessariamente origem cristã, pois a história da salvação não avança exclusivamente através dos caminhos da Igreja, pedem-lhe uma atenção e uma disposição de aprendizagem perante realidades não próprias.

3. Uma proposta metodológica na busca da verdade está relacionada com o número anterior. A GS aceita, quer e procura a colaboração de todos, já que as questões que se propõe tratar são problemas de todos os homens e não apenas dos cristãos. Aponta como metodologia para a abordagem e resolução de “tantos e tão complexos problemas” que “afectam profundamente a humanidade” a utilização concertada da “luz do Evangelho e da experiência humana” (n. 46); isto é, a revelação cristã e os saberes humanos. A Igreja tem na “palavra divina” “os princípios”, mas não as “respostas prontas”; por isso é preciso encontrá-las; para tal junta o que é próprio seu, “a luz da revelação”, à “competência de todos os homens”, para que o “caminho da humanidade receba luz” (cfr. n. 33). Neste contexto se compreende a referência que faz à necessidade de usar as ciências humanas na teologia e na pastoral (cfr. nn 33, 44, 62 ...). A verdade do humano aparece não tanto como uma realidade já alcançada e a propor para ser aceite, mas a buscar.

4. A centralidade da consciência moral: “a dignidade humana exige que ele (o homem) proceda segundo a própria consciência e por adesão ou seja movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa” (n. 17). A consciência está colocada no centro da própria dignidade da pessoa que deve agir de acordo com ela e por adesão pessoal e interior: a grandeza da acção livre está aí. O agir “pessoal e a partir de dentro” põe em destaque a justa autonomia; a pessoa não pode limitar-se a receber passivamente preceitos provenientes do exterior e a aplicá-los. No n. 16 afirma: “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser”. Esta consciência fundamental transporta consigo um carácter imperativo: “essa voz está sempre a chamá-lo ao amor do bem e à fuga do mal”. Em todo o ser humano, crente ou não, está presente a voz apelante de Deus sob formas diferentes, seja dos valores ou da experiência do divino: a consciência é a instância onde se percebem. Da consciência fundamental e do seu imperativo brota a consciência como juízo prático que nas situações concretas leva a optar por uma determinada decisão. Na fidelidade à consciência o cristão busca com todos os homens, a verdade para resolver os problemas morais concretos. É aí que os homens se encontram. Na relação consciência - verdade, a GS acentua a verdade da consciência moral, secundarizando a consciência da verdade (dimensão cognitiva).

5. A Constituição trata algumas questões; todas elas relevantes, e que mereceriam destaque; passados quase quarenta anos, os temas do matrimónio, da família, da cultura, da paz, da política, da economia, da comunidade internacional, precisam de actualização; o aggiornamento conciliar não pode ficar limitado à época do Concílio. A própria Constituição sublinha de modo explícito que, pelo seu carácter peculiar, ser pastoral, deve permanecer aberta a desenvolvimentos ulteriores. O Concílio, acreditando nas virtualidades de um diálogo profundo, teve a coragem de se contentar com coisas “imperfeitas”. A nota n. 1 do proémio, pouco citada, diz que “não compreende apenas elementos imutáveis, mas também transitórios”, e que a “Constituição deve ser interpretada segundo as normas teológicas gerais, tendo em conta, especialmente na segunda parte, as circunstâncias mutáveis com que estão intrinsecamente ligados os assuntos em questão”.

Jerónimo Trigo, cmf.


Fonte Ecclesia

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