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Sem pecado original
2002-03-29 12:53:55

Adão e Eva não foram os «pais» da Humanidade e o Pecado Original não existiu. Nem tão-pouco Deus exigiu a morte do seu filho para expiar a culpa do primeiro Homem. A negação de tantas «certezas» bíblicas é defendida pelo teólogo Armindo Vaz, numa tese que coloca em causa a doutrina oficial da Igreja Católica.


A memória da crucificação e morte de Jesus é hoje, Sexta-Feira Santa, ritualizada mais uma vez em todo o mundo por mais de dois mil milhões de cristãos, num cerimonial de compungida homenagem pelo sacrifício de expiação do pecado de toda a Humanidade, voluntariamente assumido pelo filho de Deus. Um pecado suportado desde o início dos tempos por culpa de Adão e de Eva, que aceitaram o convite de uma serpente para ascenderem à condição de deuses. A esta breve Idade de Ouro do primeiro casal humano sucedeu-se o castigo divino, carregado de dor, sofrimento e morte, transmitido como herança a cada um dos futuros viventes.

É nesta trágica narrativa do Génesis - primeiro livro da Bíblia, no qual se relata a criação do mundo -, que assenta a doutrina do Pecado Original. O seu arquitecto foi o controverso Santo Agostinho, um professor de retórica nascido em Tagaste (Argélia), que se notabilizara como arrebatado defensor dos ideais estóicos e maniqueístas. Mas, após uma vida dissoluta que o deixava amargurado na «lama da concupiscência», arrastando-o «para um abismo de paixões e vícios» - conforme reconheceu nas suas «Confissões», primeiro livro autobiográfico da literatura cristã -, aceitou o baptismo durante a celebração da vigília pascal, na noite de 24 de Abril de 387, com 33 anos de idade.

Mas Santo Agostinho, futuro bispo de Hipona, mal foi admitido no seio da Igreja de Roma iniciou de imediato a redacção do seu «Diálogo Sobre o Livre Arbítrio», no qual faz ressaltar as dúvidas que lhe haviam tomado a mente sobre a origem do mal. Não tardou a associar definitivamente a queda dos «primeiros pais», Adão e Eva, a uma transgressão de ordem sexual. E deste raciocínio até à vulgarização de que o pecado acompanha qualquer acasalamento humano, foi um passo. Ainda hoje, o Catecismo da Igreja Católica reconhece que «o pecado de Adão se tornou pecado de todos os seus descendentes», classificando-o como uma «inclinação para o mal, que se chama concupiscência», a mesma expressão utilizada por Agostinho.



«Adão e Eva Expulsos do Paraíso», 1427, Masaccio

O relato bíblico onde o santo africano fundamentou a sua tese surge nos segundo e terceiro capítulos do Génesis. Neles se descreve a fabulosa história do paraíso terrestre, no qual Deus instalou um homem e uma mulher para usufruírem «de todas as árvores do pomar»... O infeliz desenlace da narrativa literária mais comentada do mundo já se conhece. Diferente leitura faz o teólogo Armindo Vaz. Professor de Teologia Bíblica na Universidade Católica Portuguesa, defendeu na respeitada Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, a única tese de doutoramento onde se reconhece que esta narração do Génesis, escrita entre os séculos X e IV aC, é tão-só um mito de origem, que «pretende explicar a criação do Homem e a sua condição finita».

«Quando se refere a existência de um mito na Bíblia fica-se logo disposto a recusar, porque ainda se mantém uma incorrecta concepção de mito, pensando-se que é uma fantasia, sem qualquer relação com a realidade.» A advertência do padre Armindo Vaz pretende que o interlocutor perceba de que realidade o autor bíblico está a falar. «Não se trata de uma narração factual. Quando o autor coloca Deus a criar está a fazer uma afirmação de fé», sublinha o teólogo para logo anotar: «O mito começa quando o relato bíblico se inicia: 'No dia em que o Senhor Deus fez o Céu e a Terra...' Ou seja, atribuindo a origem de todas as realidades ao princípio absoluto de tudo.»

É precisamente esta razão que leva o investigador a afirmar que «não se pode pensar que o ser humano quando nasce, já nasce em condição de pecado», até porque, esclarece, «a teologia bíblica deixa bem claro que o ser humano foi criado por Deus, à sua imagem e semelhança». Como se explica então que o autor bíblico coloque Adão e Eva a desobedecerem a uma proibição de Deus, que não lhes permitia comer das duas Árvores - a da Vida e a do Conhecimento do bem e do mal - colocadas «no centro do pomar»? O teólogo chama a atenção para que o mito de origem não se limita a relatar «os aspectos simpáticos da criação», como o aparecimento dos animais e das plantas. «O narrador bíblico quer interpretar tudo. Ou seja, também está interessado nos aspectos negativos da vida humana.»

As exigências do trabalho, a busca do pão de cada dia, o cuidado das crianças, incluindo o parto, e a finitude da vida humana constituem o «lado negro» da vida com que o autor do Génesis se defrontou e ao qual teve de dar uma explicação através da fé. É aqui que surge a serpente, a exemplo de outros mitos de origem da região onde se situava o escritor bíblico, como a epopeia de Gilgames (2700 a.C.), a quem uma serpente roubou a planta da eterna juventude, e aos quais o autor bíblico não era alheio. «É essa condição finita com todos os aspectos dolorosos da condição humana que o narrador interpretou, colocando Deus a punir uma transgressão.»

Com Adão e Eva, a serpente desempenha o papel de despertador dessa situação: «No dia em que comerdes dele (do fruto da Árvore do Conhecimento) se abrirão os vossos olhos e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal.» E reconheceram que estavam nus. «Quando o narrador diz que homem e mulher não tinham vergonha um do outro, está a significar que não tinham consciência da sua nudez», diz o teólogo, para quem a transgressão é «apenas metafórica», por denunciar «um estado de incivilização». Na leitura de Armindo Vaz, «não se trata, portanto, de um estado paradisíaco, no qual homem e mulher viveriam em perfeita comunhão com Deus, sem perturbação da sua sexualidade». Pelo contrário, até ao momento da transgressão, Adão e Eva «não estavam completos». Portanto, conclui o sacerdote, «se o narrador quisesse significar que os humanos em processo de criação haviam pecado, estaria a responsabilizar Deus. Já que é Deus o único responsável pelo processo de criação, e dele os dois seres dependiam totalmente».

Só a partir desta releitura do mito de origem bíblico é que se consegue compreender o entendimento que Armindo Vaz faz do momento em que a narração coloca Deus a «punir» os transgressores, incluindo a serpente. «A punição dada à serpente insere-se na mesma linha da atribuída à mulher e ao homem», porque, na verdade, nunca o narrador do Génesis utiliza a palavra pecado, diz o teólogo. E como «a transgressão relatada é metafórica», o investigador atribui à serpente do Génesis um papel idêntico ao do réptil da lenda de Gilgames, que conhece as propriedades da planta da Vida.

Não foi este o entendimento de Agostinho, e depois dele o de toda a Igreja, que aceitou e incluiu na sua doutrina a tese do Pecado Original. O bispo de Hipona viu na descoberta da nudez um pecado de carácter moral, a perversão sexual que marcou toda a Humanidade. Armindo Vaz, porém, não se inclina perante esta interpretação. «Convertido ao cristianismo, o pano de fundo do maniqueísmo não desapareceu do pensamento de Santo Agostinho», reconhece o teólogo, para esclarecer que o «pai» do Pecado Original, «quando se deparou com este texto do Génesis, viu nele o relato da sua história pessoal. Nesse Adam (que em hebraico significa homem), que ele entendeu como nome próprio, viu a sua própria pessoa, enquanto naquela Eva (que em hebraico significa vitalidade), que ele também percebeu como um nome próprio, reconheceu a mulher da qual teve um filho, numa relação extramatrimonial».

No final do relato, porém, o autor do Génesis sente a necessidade de colocar anjos a guardarem «o caminho para a Árvore da Vida». É o desvendar de todo o mistério? Armindo Vaz defende que sim. Trata-se de uma explicação, para demonstrar que o ser humano não pode ser imortal. «Os querubins surgem para significar que o acesso à Árvore da Vida está vedado ao Homem.»


Fonte Expresso

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