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Amor e Vocação - Catequese quaresmal de D. José Policarpo
2002-03-25 15:49:30

1. Falar dos caminhos cristãos do amor é, necessariamente, falar de vocação. Dissemos no início destas Catequeses Quaresmais que o tema nos levaria a descobrir mais profundamente a convergência entre a natureza e a graça, isto é, entre as capacidades naturais de amar e o chamamento de Deus a um amor maior, cuja possibilidade não depende, apenas, da nossa natureza, mas do dom do Espírito Santo, que nos é dado a partir da nossa relação com Cristo, desde o baptismo. Deus atrai-nos, revela-se-nos e mostra-nos o Seu desígnio, de Quem nos criou para atingirmos a perfeição do amor, na caridade, e a plenitude da comunhão com Ele e com os irmãos.


Ao descobrirmos a radicalidade do Seu desígnio de amor em Jesus Cristo, percebemos que já nos criou por amor e para o amor – a essas potencialidades da criação chamamos natureza – e que nos atrai continuamente para um amor maior, desígnio explicitado na sua Palavra. Porque nos atrai, nos interpela e nos chama, os caminhos do amor são uma vocação e toda a vocação cristã é um caminho de amor. Foi por isso que escolhi este tema da vocação como ponto de chegada da nossa caminhada quaresmal.

Dimensão pascal da vocação cristã.
2. O facto de esta Catequese acontecer no Domingo de Ramos, início da Semana Santa, ajudar-nos-à a descobrir melhor a dimensão pascal de toda a vocação cristã e a ultrapassar os conceitos culturais de vocação, concebida como escolha do próprio caminho, daquilo que cada um deseja ser na vida. A vocação cristã é participação na vocação de Jesus Cristo, que encarna na Sua vida as exigências do amor de Deus Pai pelos homens, e que sacrifica a Sua vida à realização desse desígnio de amor. E continua a ser assim: aceitar uma vocação é dar prioridade absoluta, na nossa vida, à realização do desígnio de Deus e isso só nos é possível participando da fidelidade de Jesus Cristo. Seguir uma vocação é deixar-se atrair por Jesus Cristo, não um Cristo imaginado por nós, mas o Cristo realisticamente concreto da Páscoa. Segundo as suas próprias palavras é segui-Lo como discípulo, começando por abraçar, com amor, a própria Cruz.
É o evangelista São João quem nos apresenta a Cruz de Cristo como realidade que nos atrai, sinal de um caminho novo, o caminho da salvação. “E Eu, elevado da terra, atrairei todos os homens a Mim” (Jo. 12,32). Eis a questão: como pode o rosto de Cristo sofredor atrair os homens e mulheres de todos os tempos, de uma maneira tão forte que os leva a dar um sentido radicalmente novo às suas vidas? É por isso que o Santo Padre convidou todos, no início do novo milénio, a contemplar o rosto de Cristo, um rosto doloroso, mas que nunca perdeu a serenidade confiante de um filho. Esse rosto doloroso é o rosto amoroso do próprio Filho de Deus 1.
O rosto doloroso de Cristo continua a atrair, porque nos revela o amor de Deus por nós, e nos ajuda a descobrir quem é Jesus, cujo ser, vocação e missão se exprimem na sua fidelidade filial ao amor de Deus e ao Seu desígnio de amor para cada homem. É ainda São João quem o afirma: “quando tiverdes elevado o Filho do homem, então sabereis quem Eu sou e que não faço nada por Mim mesmo; o que o Pai me ensinou, Eu o digo e aquele que Me enviou está comigo” (Jo. 8,27-29).
Na Cruz de Cristo eleva-se da terra a esperança da misericórdia para o homem pecador, que recupera a sua dignidade de filho de Deus. Não tenhamos medo de o afirmar: naquela Cruz está suspensa a humanidade pecadora, que se abandona à misericórdia de Deus, que aceita deixar-se morrer, na sua vida de pecado, para renascer para uma vida nova e uma dignidade recuperada. Naquela Cruz foi executado um inocente, mas que assumiu totalmente a condição pecadora da humanidade. “Aquele que não havia conhecido pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, n’Ele, justiça de Deus” (2Cor. 5, 21).
Este é o sentido profundo de toda a vocação cristã. Ela é possível, porque morremos na Cruz, com Cristo, com Ele nos abandonámos totalmente ao amor misericordioso de Deus, e entregámos a nossa vida para que esse mistério de misericórdia abrace a humanidade. Só conhecemos, verdadeiramente, o drama do nosso pecado, quando sentimos a força libertadora da misericórdia e nos deixamos morrer para que o Reino de Deus triunfe, em nós e no mundo. A atracção da Cruz é a paixão por esse rosto novo da humanidade, é o convite a deixar morrer em nós o “homem velho” e construir a nossa vida com a novidade pascal da confiança e da fidelidade.

Toda a vocação é chamamento à santidade.
3. Na Cruz de Cristo conjugam-se, em núpcias misteriosas e fecundas, a santidade de Deus, o “três vezes santo” (cf. Is. 6,3), com o pecado do homem. Naquela Cruz um homem é tão santo como Deus, e recupera para o projecto de santidade, todos os homens que se unam a Ele. A santidade de Cristo não é apenas divina, é humana, exprimiu-se na existência humana de um Homem concreto, no compromisso da sua liberdade; e é a de um homem marcado pelo pecado, não o seu, mas os nossos, que Ele assumiu como seus. É por isso que a santidade de Jesus Cristo é modelo para a nossa santidade. N’Ele descobrimos todos os desafios da santidade cristã:
* O deixar morrer radicalmente em nós o pecado e a sua memória. E esse mergulho no abismo da morte é abandono confiante ao amor misericordioso de Deus;
* A fidelidade sem reservas à vontade de Deus, que é um desígnio de salvação;
* Balbuciar, timidamente, nesse abismo da morte, a primeira expressão de louvor ao Deus Santo. Quando o louvor brota espontaneamente do nosso coração pecador, é sinal de que a morte está a ser vencida pela vida, mesmo ainda na dureza da paixão, isto é, da nossa luta contra o pecado;
* A libertação do coração para um amor purificado, digno de Deus. A Cruz é um acto de amor infinito e sem reservas e restitui-nos a possibilidade de sermos como Deus na nossa experiência do amor. Aí o cristão partilha da urgência e da universalidade do amor salvífico de Deus. Na sua pregação Jesus anuncia esta novidade de amor, num coração redimido, falando-nos do amor difícil, aquele que não pode contar com a força da natureza, o amor daqueles que espontaneamente não são amáveis. “A minha mensagem é esta: amai os vossos inimigos, rezai pelos vossos perseguidores e assim sereis filhos do vosso Pai que está nos Céus” (Mt. 5,44-45).
* A esperança da ressurreição, que brota, como flor espontânea, da própria experiência do sofrimento oferecido. A certeza da vida experimenta-se na generosidade e na grandeza da morte.
Unir-se a Cristo, pelo baptismo, é participar, com Ele, na plenitude da santidade como fidelidade ao Pai. É a mensagem de Paulo aos Romanos: “Se morremos para o pecado, como é que ainda permanecemos nele? Ou ignorais que, baptizados em Jesus Cristo, foi na Sua morte que fomos baptizados? De facto, no baptismo fomos sepultados, com Ele, na morte, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova” (Rom. 6,2-4). A primeira concretização da santidade cristã é a luta contra o pecado, aceitando morrer com Cristo, para que a nossa vida renovada seja participação na Sua ressurreição.
A vocação á santidade é inerente à vocação cristã, é chamamento para todos independentemente das vocações concretas que seguirem. “Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação” (1Tes. 4,3). E o Papa diz-nos, citando o Concílio: “É um compromisso que diz respeito não apenas a alguns, mas os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” 2. O chamamento à santidade concebida como perfeição do amor, é a fonte de todas as exigências morais do cristianismo.

Chamamento universal na variedade das diversas vocações.
4. Podem ser muitos os caminhos em que os cristãos procuram realizar esta universal vocação à santidade. Todos têm em comum a dimensão pascal da vocação cristã. Fiel ao fio condutor destas Catequeses Quaresmais, referirei, em primeiro lugar, o matrimónio como caminho de santidade e o sentido em que o matrimónio pode ser uma vocação cristã.
Para se falar do matrimónio como vocação cristã, não basta gostar de se casar. Esse é o chamamento da natureza, comum a todos os homens e mulheres. Quando se trata de discernir uma vocação, o cristão sente, no mais profundo do seu ser, duas vozes: a da natureza e a do Espírito de Cristo, a Quem se uniu pelo baptismo. E toda a vocação cristã supõe que se escute a voz do Espírito, que nos revela as exigências da santidade e os caminhos da construção do Reino de Deus. Os que escolhem o matrimónio como vocação cristã, não podem ouvir apenas a voz da natureza, mas escutar os chamamentos de Deus, a revelação da Sua vontade e decidirem-se a viver as realidades próprias do matrimónio com a exigência da santidade, o que supõe a determinação de mergulhar, continuamente, na morte de Cristo, todos os instintos de uma natureza pecadora, para que eles se convertam em forças de amor-caridade. Como já referimos noutra Catequese, esta é a graça própria do sacramento do matrimónio.
É bom lermos, a este propósito, um texto da Novo Millenio Ineunte: “Na visão cristã do matrimónio, a relação entre um homem e uma mulher – relação recíproca e total, única e indissolúvel – corresponde ao desígnio original de Deus, o qual, ofuscado na história pela «dureza do coração», foi restaurado no seu esplendor primordial por Cristo, mostrando o que Deus quis «ao princípio» (Mt. 19,8). No matrimónio elevado à dignidade de sacramento, está expresso o «grande mistério» do amor esponsal de Cristo pela sua Igreja” (cf. Efs. 5,32) 3.

5. O matrimónio como vocação descobre-se em cada dia da vida do casal, que procura viver em Cristo morto e ressuscitado todo o seu dinamismo de amor: uma sexualidade purificada e redimida, a vivência da felicidade na sua dimensão de alegria pascal, na delicadeza da fidelidade, interpelados pela fidelidade de Jesus Cristo, a generosidade da fecundidade procurada e respeitada como participação no acto criador de Deus, a irradiação do seu amor de esposos na construção da comunidade familiar e na edificação da Igreja.
Nem sempre no início, no momento da celebração do matrimónio, está garantida a consciência desta vocação à santidade, embora a graça sacramental esteja radicalmente garantida pelo baptismo. Quero apenas dizer que, é triste constatá-lo, o casamento religioso não significa, necessariamente, a escolha do matrimónio como vocação cristã. A prática da Igreja de facilitar, com o mínimo de condições, o casamento canónico, parte da sua convicção de que, entre baptizados, só é válido o casamento sacramento e que os baptizados, quando o pedem seriamente, têm direito a ele. Mas é um grande desafio à acção pastoral, junto dos jovens, no momento das suas escolhas, junto dos noivos na preparação para o seu casamento, junto dos esposos para os ajudar a descobrir, em cada dia, o caminho maravilhoso que encetaram, talvez sem uma consciência completa disso. Não podemos esquecer que outras dimensões da nossa pastoral diocesana dificilmente encontrarão soluções sem a evangelização da família.

6. A compreensão da dimensão pascal do matrimónio, enquanto vocação cristã, ajuda a compreender a virgindade consagrada como opção vocacional. Se a confrontarmos apenas com o casamento entendido como realização de uma inclinação natural, a virgindade por amor do Reino fica desenquadrada, aparece como um caminho difícil, porventura incompreensível, única vocação a exprimir a radicalidade da morte e ressurreição de Cristo.
Convido os jovens a não se assustarem, ao fazerem a sua escolha vocacional. Confrontem as suas escolhas com as exigências da santidade cristã e abram-se não apenas à voz da natureza, mas à voz do Espírito que revela o plano de Deus a cada um. Faço minhas as palavras de João Paulo II na Novo Millenio Ineunte: “Um generoso empenho certamente há-de ser posto – sobretudo através de uma oração insistente ao Senhor da messe (cf. Mt. 9,38) – na promoção das vocações ao sacerdócio e de especial consagração. Trata-se dum problema de grande importância para a vida da Igreja em todo o mundo. Mas, nalguns países de antiga evangelização, tal problema tornou-se dramático devido à alteração do contexto social e à aridez religiosa causada pelo consumismo e secularismo. É necessário e urgente estruturar uma vasta e capilar pastoral das vocações, que envolva as paróquias, os centros educativos, as famílias, suscitando uma reflexão mais atenta sobre os valores essenciais da vida, cuja síntese decisiva está na resposta que cada um é convidado a dar ao chamamento de Deus, especialmente quando este pede a total doação de si mesmo e das próprias forças à causa do Reino” 4.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

NOTAS
1- Novo Millenio Ineunte, nn. 24-26
2- NMI, n. 30, cf. Lumen Gentium, n. 40
3- NMI, n. 47
4- NMI, n. 46


Fonte Ecclesia

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