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Catequese quaresmal de D. José Policarpo - A Fecundidade do Amor
2002-03-11 23:29:23

1. O amor é a mais bela expressão da vida e por isso comunica espontaneamente a vida. São Tomás de Aquino afirmou-o numa fórmula, hoje consagrada: “amor est difusivum sui”, isto é, o amor expande-se a si mesmo, difunde-se à sua volta.


É esta característica do amor que explica o mistério da criação. Deus, o amor absoluto – “Deus é amor” (1Jo. 4,8-16) – que exprime, desde toda a eternidade, a fecundidade desse amor, na vida íntima da Santíssima Trindade, na geração do Filho e na inspiração do Espírito Santo, concretiza-a também na criação do universo e do homem. Deus cria a partir do amor e para o amor; o homem foi criado por amor e para o amor.
Esta expansividade do amor exprime-se, na nossa vida, de maneiras muito simples: uma pessoa feliz ajuda os outros a serem felizes, alguém que ama, traça à sua volta, um rasto de luz e de vida. É por esse mesmo dinamismo que a Igreja, amada por Jesus Cristo, reflecte no seu rosto, para os outros homens, a luz de Cristo. 1
O amor gera no coração das pessoas que amam e são amadas, um dinamismo, uma inquietação, que as faz sentir-se enviadas a testemunhar o amor. Essa força é a origem, por exemplo, do dinamismo missionário e apostólico e do ardor de todos os grandes apaixonados pelo serviço dos outros homens. O fruto espontâneo da fecundidade do amor é semear o amor, amando cada vez mais os que já amamos, descobrindo que amar é anunciar e comunicar a vida. Jesus disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo. 10,10).

A fecundidade do matrimónio cristão.
2. Relembremos aqui que a comunhão conjugal, união de amor do homem e da mulher, é a mais forte expressão da “imagem de Deus” que trazem gravada no seu coração. Por isso esse amor participa da fecundidade do amor de Deus. Essa fecundidade é total. Não só participam espiritualmente desse amor divino, entrando na comunhão trinitária e semeando, com o seu amor, a alegria noutros corações, mas partilham com Deus a alegria da criação, gerando filhos, outros homens e mulheres, também eles “imagens de Deus” e vocacionados para o amor. Ao gerar filhos, o homem e a mulher participam no poder criador de Deus. Diz o Santo Padre João Paulo II na Familiaris Consortio: “na sua realidade mais profunda, o amor é essencialmente dom. o amor conjugal, levando os esposos ao conhecimento recíproco que os torna «uma só carne», não se esgota no interior do próprio casal, já que os habilita para a máxima doação possível, pela qual se tornam cooperadores de Deus no dom da vida a uma nova pessoa humana. Deste modo os esposos, enquanto se dão entre si, dão, para além de si mesmos, um ser real – o filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do seu ser de pai e mãe” 2.
Segundo o Livro do Génesis, a procriação de um filho constitui a plenitude do dinamismo da criação. Do mesmo modo que a criação do homem só ficou completa com a criação da mulher, assim a do casal só atingiu a sua plenitude no nascimento de Caim. Eva, depois de ter concebido e dado à luz exclama: “adquiri um homem pelo poder de Deus” (Gen. 4,1). Na sua fecundidade o par humano atinge a sua plenitude enquanto imagem de Deus. A alegria da maternidade é a mais bela exultação pelo dom da vida. Eva reconhece duas coisas fundamentais no dom da fecundidade: o filho que gerou é um homem, igual ao que saiu das mãos de Deus, e ela gerou-o com o poder de Deus, não um poder mítico e factual, mas dinamismo inserido na força da criação. A procriação é a plenitude da criação.
Leiamos, a este propósito, mais um texto da “Familiaris Consortio”: “Deus, com a criação do homem e da mulher à Sua imagem e semelhança, coroa e leva à perfeição a obra das suas mãos. Chama-os a uma participação especial do seu amor e poder de Criador e Pai, mediante a sua cooperação livre e responsável na transmissão do dom da vida humana. (...) A fecundidade é o fruto e o sinal do amor conjugal, o testemunho vivo da plena doação recíproca dos esposos” 3, e da sua disponibilidade para realizarem na vida a obra fecunda do próprio Deus.

Amor esponsal e amor paternal-maternal.
3. O amor esponsal revela a identidade profunda do homem e da mulher. A sua união de amor torna-se revelação e é fonte de conhecimento mútuo. E nessa revelação da identidade profunda do homem e da mulher, ressalta a sua qualidade de pai e de mãe. O amor conjugal desabrocha na paternidade e na maternidade. E assim se reconhecem, mais uma vez, como “imagem de Deus”. É que no mistério de Deus, comunhão trinitária, a cuja imagem foram criados, o Espírito de amor revela a identidade de Deus Pai e de Deus Filho; a paternidade de Deus Pai é partilhada pelo homem, criado à imagem de Deus, na paternidade e na maternidade humanas. Quando alguns arriscam afirmar que Deus também é mãe, exprimem apenas a intuição que a maternidade humana é participação do mistério da paternidade divina. Aliás, nada na criação se assemelha tanto ao coração de Deus como um coração de mãe, que encontra a sua plena expressão no coração de Nossa Senhora, a Virgem Mãe.
O Livro do Génesis, narração original da criação, une a intimidade conjugal ao conhecimento mútuo dos esposos e esse conhecimento revela, na experiência da fecundidade, a dimensão de paternidade e maternidade. “O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu à luz Caim e exclamou: adquiri um homem, com o poder de Deus” (Gen. 4,1). Neste texto é Adão, o homem, que reconhece a mulher na sua maternidade, e ao conhecer a sua companheira como mãe, reconhece-se a si mesmo como pai. A maternidade da mulher é a experiência a partir da qual o casal se reconhece, mais profundamente, na sua esponsalidade.
Ouçamos, a este propósito, o Papa João Paulo II nas suas catequeses: “Toda a constituição do corpo da mulher, o seu aspecto particular, aquelas qualidades que, pela força de uma atracção perpétua, estão na origem do conhecimento de que nos fala Gen. 4,1-2, estão em estreita ligação com a maternidade. Com a simplicidade que lhe é própria, a Bíblia e, na sequência dela, a Liturgia, honram e louvam, ao longo dos séculos «as entranhas que te trouxeram e os seios que te alimentaram» (Lc. 11,27). Estas palavras constituem um elogio da maternidade, da feminilidade do corpo da mulher, na sua expressão típica de amor criador. São palavras que no Evangelho são dirigidas à Mãe de Cristo, a Maria a segunda Eva. Por outro lado, a primeira mulher no momento em que se revelava a maturidade maternal do seu corpo, quando concebeu e deu à luz exclama: «adquiri um homem pelo poder de Deus»” 4.
No filho, um ser humano, o homem e a mulher reconhecem-se na sua dignidade fundamental. Ouçamos ainda o Santo Padre: “a procriação faz com que o esposo e a esposa se reconheçam reciprocamente num «terceiro» gerado por eles. É por isso que este conhecimento se transforma numa descoberta, em certo sentido, uma revelação do novo ser humano, no qual, um e outro, homem e mulher, se reconhecem ainda a si mesmos, descobrem a sua humanidade, a sua imagem viva” 5.
Mas segundo o texto sagrado, este conhecimento mútuo começa no reconhecimento, por ambos, do fruto das suas entranhas, como um homem, imagem de Deus. Ainda hoje, o reconhecimento da dignidade humana do fruto do ventre materno, pelo homem e pela mulher, é causa de grande alegria, mas também exigência de coragem e sentido ético. O mistério da vida gerada, que envolve o sentido da própria existência do homem pai e da mulher mãe, não deixa espaço para ambiguidades morais. Um homem e uma mulher que geram um filho, ou o aceitam na sua dignidade de um outro ser humano e se descobrem na sua própria dignidade, ou o rejeitam, negando-se a si mesmos.

Fecundidade física e fecundidade espiritual.
4. É próprio do amor conjugal viver todas as expressões físicas da comunhão das pessoas, com o espírito e com o coração. É a dimensão espiritual da convivência que dá à relação a sua dimensão verdadeiramente humana. Isto tem duas consequências principais: a fecundidade física, sem densidade espiritual, não é sinal de plenitude relacional, pode ser apenas tolerada ou dramaticamente rejeitada; por outro lado a ausência de fecundidade física não compromete, necessariamente, a fecundidade do amor conjugal, como afirma claramente a Familiaris Consortio: “A fecundidade do amor conjugal não se restringe somente à procriação dos filhos, mesmo entendida na dimensão especificamente humana: alarga-se e enriquece-se com todos aqueles frutos da vida moral, espiritual e sobrenatural que o pai e a mãe são chamados a dar aos filhos e, através dos filhos, à Igreja e ao mundo” 6.
A geração física da vida é apenas o início de um processo de fecundidade do amor, aberto sobre o horizonte da eternidade, que acompanha o filho, em solicitude paternal-maternal durante o resto da vida dos pais e se alarga na experiência do amor fraterno, em Igreja. E é esta dimensão espiritual da fecundidade que permite aos casais que não puderam gerar fisicamente um filho, não serem estéreis no seu amor, porque conduzidos pelo Espírito de Deus, souberam envolver com o seu amor paternal e maternal outros que dele precisam. É que ser pai e mãe é, realmente, participar no amor paternal de Deus.

A fecundidade apostólica do amor conjugal.
5. Mistério de comunhão, santificado pelo Espírito Santo, o amor conjugal, expressão específica da caridade, expande-se na edificação da Igreja como mistério de comunhão. Há uma fecundidade apostólica do amor conjugal dos cristãos.
O primeiro campo dessa fecundidade é a família, comunidade a construir a partir das experiências e das potencialidades do amor, como autêntica realização da Igreja, a “Igreja doméstica”. E todos conhecemos as exigências desta missão, na complexidade sociológica da família contemporânea, que põe à prova todas as concretizações e virtualidades do amor.
As famílias cristãs são guiadas, nesta difícil, mas apaixonante missão, pela clareza do magistério da Igreja. “No matrimónio e na família constitui-se um complexo de relações inter-pessoais – vida conjugal, paternidade-maternidade, filiação, fraternidade – mediante as quais cada pessoa humana é introduzida na «família humana» e na «família de Deus», que é a Igreja. O matrimónio e a família cristã edificam a Igreja. Na família, de facto, a pessoa humana não é só gerada e progressivamente introduzida, mediante a educação, na comunidade humana, mas graças à regeneração do baptismo e à educação na fé, é introduzida também na família de Deus, que é a Igreja.
A família humana, desagregada pelo pecado, é reconstituída na sua unidade pela força redentora da morte e ressurreição de Cristo. O matrimónio cristão, que participa da eficácia salvífica deste acontecimento, constitui o lugar natural onde se realiza a inserção da pessoa humana na grande família da Igreja” 7.
De facto, a fragilidade da família como comunidade de vida e de amor em construção, repercute-se na Igreja como uma das suas fragilidades. Apoiar os pais e as famílias nesta edificação de autênticas comunidades de vida, deve ser nossa prioridade nas opções pastorais. E com a mesma clareza dizemos aos esposos e pais cristãos que a família é o campo primordial da vossa actividade e testemunho apostólicos.
A vivência do vosso matrimónio, fortalecida pela graça do sacramento e contextualizada nas exigências concretas da vossa comunidade familiar, serão fontes principais inspiradoras de uma espiritualidade e caminho da vossa santificação. É a partir desse santuário, que é a vossa família, que a fecundidade do vosso amor alargará os horizontes e frutificará em zelo apostólico e ardor missionário, para a edificação da Igreja como mistério de comunhão.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

NOTAS
1- Cf. Lumen Gentium, n.º 1
2- Familiaris Consortio, n.º 14
3- Ibidem, n.º 28
4- João Paulo II, À l’immage de Dieu homme et femme, pg. 175
5- Ibidem, pg. 174
6- Familiaris Consortio, n.º 28
7- Ibidem, n.º 15


Fonte Ecclesia

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