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Dá-me a alegria de ser salvo (Sl. 50, 4)
2002-03-06 21:56:55

Homilia de D. Teodoro de Faria, Bispo do Funchal.
Introdução
1 – Desde quarta feira de cinzas pusemo-nos a caminho da Páscoa. A Palavra de Deus vai iluminar o caminho que começamos a trilhar, essa Palavra, diz o salmista é «a luz dos nossos passos», ela vai colocar-nos na intimidade com o Pai que está nos Céus.


No meio das múltiplas preocupações quotidianas nem sempre é fácil colocar Deus no centro da nossa vida. Mas temos necessidade de reavivar a graça do nosso baptismo, de saborear a alegria de sentirmo-nos amados por Deus, perdoados dos nossos pecados, salvos pelo seu amor. No princípio da quaresma rezamos com o salmista (Sl. 50, 4) «Dá-me a alegria de ser salvo».


As tentações

2 - A quaresma começa sempre por apresentar-nos no primeiro domingo as tentações de Jesus. Trata-se de uma situação que se repete em cada homem e principalmente no crente. As tentações de Cristo recordam-nos que seremos sempre tentados a afastar o plano de Deus em nossa vida. Jesus venceu as provas a que foi sujeito; no deserto, no tempo de Moisés, os antepassados de Jesus sofreram as mesmas tentações mas foram vencidos. Mais ainda, já no princípio, o primeiro par humano, Adão e Eva, também foram tentados e ficaram sujeitos ao demónio, o inimigo da humanidade.

Cada um de nós tem uma vocação e missão a cumprir. A vida não é um jogo, nem um peso, mas um dever que temos de afrontar com responsabilidade e coragem, para chegarmos à meta e receber a recompensa. Para isso precisamos de ter os olhos abertos.
Quando Adão e Eva desobedeceram a Deus, os olhos abriram-se e descobriram que estavam nus. Procuraram ser iguais a Deus, dispensaram Deus das suas vidas e descobriram a sua indigência, pobreza, vulnerabilidade. Descobriram que a sua nudez não era só corporal mas carência de todo o conhecimento verdadeiro.

Esta narração do Génesis escrita de uma forma sapiencial é também para nós. Temos de ter os olhos bem abertos e saber que não somos deuses, mas humanos, mortais. Grande sabedoria é reconhecer esta nossa condição, conhecer-se a si próprio diante de Deus, com as nossas limitações, tendências e fraquezas.

São Paulo no caminho de Damasco ficou cego ao contemplar Cristo ressuscitado, e recuperou a vista quando Ananias lhe impôs as mãos. Recuperou então a sua nudez, não tinha conhecimento da pessoa divina de Jesus, que o amara e morrera na cruz para o salvar e lhe confiaria a evangelização dos gentios.

O evangelista São Mateus mostra no Evangelho que Jesus, no início da sua missão, ao ser tentado, preferiu a pobreza, a humildade e o serviço, enquanto o demónio lhe apresentava a facilidade, o maravilhoso, a notoriedade, o domínio, como um caminho de glória para se impor aos homens e aos poderosos.

Adão e Eva são protótipos da humanidade histórica, recusam a sua condição de criaturas com os seus limites para serem deuses. Jesus, que era de condição divina, tomou a nossa natureza humana, humilhou-se, tornou-se servo. Tomou um caminho oposto ao de Adão.

A tentação da violência

3 – Após os acontecimentos de 11 de Setembro nos EUA com o derrubar das torres gémeas, a consciência humana tem reflectido sobre uma das tentações mais frequentes em nossos dias – a violência e a necessidade da construção da paz.
A tentação da violência tem a sua raiz nas tentações do povo de Deus no deserto e nas de Cristo: possuir bens sem medida, dominar sobre os outros, tornar-se protagonista. Um dos caminhos que Satanás propõe para subverter a ordem do Criador é a violência em qualquer uma das suas formas actuais. Nos últimos anos a violência está cada vez mais perto da porta da nossa casa.

Embora os casos mais graves de violência que nos afligem aconteçam em países amigos onde vivem as nossas comunidades migrantes, e a morte violenta se tornou rotina, hoje, lamenta-se cada vez mais o número de pessoas que sofrem algum tipo de violência. Preocupados com a situação queremos descobrir motivos para compreender ou explicar os actos de violência que começam pela violação dos direitos das pessoas, geralmente dos mais débeis e indefesos, e termina, por vezes, em mecanismos estruturais de violência.
A debilidade humana, que no livro do Génesis leva Caim a matar Abel, estende-se sobre a humanidade e, como nuvem escura, paira sobre nós, embora com tonalidades diferentes.
A origem da violência é muito complexa, o que não podemos aceitar é a explicação dos que vêm nela um fenómeno banal e até normal.


Promover os valores essenciais

4 – Sem Deus é muito difícil combater a violência. Sem a concepção de que cada pessoa traz em si uma marca de Deus, que ama a todos e os quer tornar felizes, não se conseguirá apresentar a violência como um acto desumano, pois toda a pessoa é uma criatura de Deus igual a mim próprio.

Sem a promoção e defesa dos valores essenciais, tais como a defesa da vida desde o seio materno, o amor e o respeito para com os outros, o «não faças aos outros o que não queres que te façam a ti», não só não diminuirá a violência como aumentará a tendência para a banalizar.
Não é motivo de consolação afirmar que noutros lugares ainda é pior; é necessário combater a banalização da violência, o que não acontece quando não se promovem os valores essenciais.

Quando as principais instâncias de promoção dos valores - a família, a Igreja, a escola – são desestabilizadas ou ridicularizadas, o que por vezes acontece com certos meios de comunicação, a violência aparece como um facto normal e é tida como inevitável. Este processo é muito perigoso, principalmente para as crianças e jovens, que vão identificar-se e imitar os seus heróis violentos.

Ganhar dinheiro, de preferência de uma forma fácil, é uma tentação para jovens e menos jovens de classes pobres, por vezes sem formação, que recorrem ao furto, ao esticão, ao ataque de pessoas idosas e indefesas, para os seus gastos consumistas e até perniciosos.
A falta de uma formação que dê sentido à vida está na origem do tédio e vazio de jovens de todas as classes que podem cair nas malhas da violência.

A tentação de combater a violência com a violência é muito forte. Desta maneira perde-se a fé numa sociedade de paz e fraternidade. Não existem receitas simples e feitas, mas é necessário que continuem ou se iniciem mudanças na sociedade a começar pelas crianças e adolescentes.
Os comportamentos morais são um dos elements chave no processo de eliminação da violência e formação da juventude, não só dos indivíduos mas também dos grupos.

O desenvolvimento moral depende também de estruturas externas, tais como a família, a Igreja, a escola, a comunidade, clubes recreativos e culturais. Todos eles promovem mecanismos fraternos, solidários, democráticos. Nestas estruturas nascem e fortificam-se redes de solidariedade.
É preciso valorizar cada vez mais a pessoa humana. O fundamento desta educação é o amor. Quem não foi amado dificilmente vai valorizar a própria vida e menos ainda a vida dos outros.
Aprender a amar e a respeitar os outros, aprender a agir com responsabilidade sem recorrer a leis para justificar a própria violência, criar condições para que a qualidade de vida melhore para todos, são formas cristãs e humanas para combater a violência. Não é colocando um polícia ao lado de cada pessoa violenta, que desaparece a violência, mas convertendo o coração, embora necessitemos cada vez mais dos defensores da ordem e da paz.

Quando a Igreja diocesana criou paróquias e constrói igrejas e estruturas de educação e promoção humana nas zonas intermédias entre a cidade a as partes altas, ela está a contribuir para comportamentos morais e promoção dos valores entre as novas gerações. A ajuda material que o governo da Região concede na construção destas estruturas é altamente compensada com a acção educadora e diminuição da violência em zonas que se podem tornar de alto risco. Não é dinheiro perdido aquele que se concede às redes tradicionais de solidariedade, que ajudam a criar uma sociedade mais humana e pacífica.


CONCLUSÃO

5 – No começo da Quaresma, a Igreja convida os cristãos, que se reúnem na Eucaristia, a meditar no pecado e na tentação, ambos presentes neste mundo. As tentações do povo de Deus no deserto e as de Cristo conservam a sua actualidade. O adversário do plano de Deus, o demónio, continua a atacar e a agir, mesmo que muitos já não acreditem nele e tudo expliquem pela liberdade humana.

Jesus experimentou a fome mas não se serviu dos seus poderes para interesse próprio, embora num uso legítimo. Jesus não quis inaugurar o Reino de Deus com obras poderosas, transformando pedras em pão, nem com um acto extraordinário precipitando-se do pináculo do templo, nem dominando sobre todo o universo.

O Reino de Deus não deve ser confundido com as realidades deste mundo, por mais válidas que elas sejam. As tentações são sempre muito subtis. O apóstolo e o cristão devem fugir da procura do sucesso, mesmo quando dirigem obras de assistência, ou promovem revoluções sociais, ou organizam divertimentos sãos.
A quaresma ajuda o cristão a descobrir em si os perigos de alienação dos valores espirituais. O pecado é colocado no coração do homem, ele não consiste tanto no acto material quanto na soberba que se levanta contra Deus, recusando-lhe obediência e dependência.
Senhor, não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amen.

Funchal, 17 de Fevereiro de 2002

† Teodoro de Faria
Bispo do Funchal


Fonte Ecclesia

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