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Do Amor à Caridade: Catequese do 1.º Domingo da Quaresma
2002-02-19 21:55:55

Por: D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa.
1. O amor é o tema mais presente nas diversas culturas da humanidade, quase a sugerir que o sentido da vida humana se decide na experiência de amor e na forma de amar.


O nosso tempo não faz excepção e o amor ocupa o centro da busca humana: é cantado na poesia, analisado na literatura, celebrado na dedicação generosa ao próximo. Ele é festa e drama, luz e interrogação, paixão e ternura serena, desejo e posse, contemplação e estímulo para a acção; busca de intimidade e comunhão ou simples procura da própria felicidade, tornando-se, tantas vezes, o rosto disfarçado do egoísmo.
No amor sobressaem duas realidades: a pessoa que ama e a realidade amada, a que poderíamos chamar o “objecto” do amor. O sujeito do amor é sempre a pessoa humana, no seu todo, com o espírito e com o corpo, com a inteligência e com o coração; o “objecto amado” podem ser realidades materiais: pode-se amar a natureza, um animal, uma obra de arte. Mas é quando a realidade amada é outra pessoa, que o amor atinge a grandeza digna do homem, pois aí os sujeitos do amor podem ser, ao mesmo tempo, amantes e amados. O amor proporciona, então, o encontro profundo entre pessoas, a construção de uma intimidade, a alegria libertadora da comunhão. Mas, quando alguém reduz outra pessoa a simples “objecto amado”, dá-se a degradação do próprio amor, porque a pessoa do outro é desejada ou possuída como objecto que gera algo de útil e agradável para o próprio: bem estar, prazer, utilidade pelo que faz ou significa.
Assim o ser humano fala de amor nas diversas situações do seu conviver com os outros: amam-se os amigos, os pais e os filhos, amam-se um homem ou uma mulher, ama-se a Deus e cada uma destas experiências de amor têm as suas características próprias e expressões específicas. É próprio do ser humano não esgotar a sua capacidade de amar apenas numa destas experiências de amor; ao contrário, cada experiência de amor vivida com generosidade abre para todas as outras. As mais envolventes de todo o ser tornam a pessoa capaz de amar em todas as circunstâncias. O amor de Deus, quando vivido com verdade e radicalidade, influencia todas as experiências de amor.

Amarás a Deus sobre todas as coisas.
2. O judeo-cristianismo é a religião que mais valoriza a experiência de amor, exactamente porque nos revela Deus como Pessoa que ama e quer ser amada, com quem o homem pode estabelecer uma verdadeira intimidade de amor e comunhão. E se é possível ao homem ser amado por Deus e abandonar-se a Ele, numa resposta de amor, essa experiência influencia todas as experiências humanas de amor. O amor do próximo brota do amor de Deus; a comunhão com Deus dá ao homem a força e o dinamismo de progredir continuamente, em qualidade, em todas as suas experiências do amor.
Do amor à caridade, enuncia-nos o itinerário do crescimento do amor, onde as capacidades naturais de amar, enfraquecidas pelo pecado, são redimidas e potenciadas pela força do Espírito de Deus, isto é, pela energia amorosa que nos vem do facto de sermos amados por Deus e de o procurarmos amar, mais que todas as outras realidades humanas. É um tema que nos situa no âmago da relação entre a nossa natureza humana e o dom da graça divina, pois a caridade significa aquele grau de perfeição do amor que só é possível ao homem com a força do Espírito Santo. A caridade acontece naqueles que fizeram da sua experiência de amor a Deus, a fonte de toda a sua capacidade de amar. “Amar a Deus sobre todas as coisas” e seguir o mandamento novo de Jesus “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”, só é possível ao homem, com a força de Deus. Mas sendo sobrenatural, é também a plena realização das nossas capacidades naturais de amar. A caridade é a verdade plena do amor, porque é o amor ao ritmo do Espírito de Deus.

Deus deu-nos um coração capaz de amar.
3. Não é a fé que nos dá a capacidade de amar. Deus criou-nos à sua imagem e, por isso, capazes de amar. Esta capacidade foi ferida pelo pecado e precisa de ser resgatada pelo amor misericordioso de Deus. A redenção restitui ao coração humano a sua capacidade de amar e eleva-o à plenitude dessa capacidade, amando a Deus e amando como Deus ama.
É na sua capacidade de amar que o homem se assemelha mais a Deus. O amor humano tem, em gérmen, todas as características do amor divino, embora não consiga, sem a graça, vivê-las em plenitude.
A atracção: todas as experiências de amor inter-pessoal começam nesse sentir-se atraído pelo outro. De repente uma outra pessoa torna-se especial, porventura única, porque há nela algo que me atrai: a sua beleza, a sua bondade, a sua inteligência, o seu mistério. A atracção do bem e da beleza está, quase sempre, na origem do amor. Nesse algo que nos atrai reconhecemos a nossa identidade profunda, os nossos anseios mais íntimos, a definição do nosso próprio ser. Começar a amar é deixar-se guiar por essa atracção, em busca de uma relação. Jesus comparou o Reinos dos Céus a um tesouro que, quando se descobre, faz-se tudo para o alcançar. E fala de atracção ao referir o amor dos discípulos para com Ele: “Ninguém vem a Mim (isto é, me seguirá) se o Pai não o atrair” (Jo. 6,44).
Só nos sentimos atraídos por alguém cuja realidade é atraente. A caridade começa sempre na atracção de Deus. Jesus refere-se a isso quando nos diz que foi Ele que nos amou primeiro. A atracção de Deus chega a ser tão forte que se torna irresistível. Sentir-se atraído é o primeiro convite a amar.
A revelação: a atracção conduz-nos à pessoa amada. Mas o amor só começa se houver revelação. A beleza que nos atrai é escondida e misteriosa, cada pessoa guarda no segredo do seu coração o seu tesouro. E desvelá-lo ao outro é já atitude generosa do dom de si mesmo. Se aquele que me atrai me aceita e se revela, o amor começa. A palavra que revela, o gesto que anuncia, constróem o encontro progressivo entre pessoas que se amam. É por isso que o amor é a mais verdadeira fonte do conhecimento do outro. As pessoas que se amam aprendem a conhecer-se progressivamente ao ritmo do amor.
Esta exigência de revelação constitui uma das maiores dificuldades do amor humano. As pessoas querem amar e ser amadas, mas não estão dispostas a revelar-se, guardam os seus segredos, escondem o seu mistério. Por vezes esperam ou até exigem a revelação do outro, mas não estão dispostas a abandonar-se na confiança. Entre desconhecidos o amor não cresce, pode mesmo murchar e morrer. Por outro lado o conhecimento mútuo aumenta a atracção recíproca.
Na experiência do amor de Deus, a Sua revelação é constitutiva do próprio amor. O Deus que nos atrai revela-se àqueles que o procuram. Revelando-se, Deus conduz-nos à intimidade com Ele; e quanto mais se revela, mais nos atrai. E ao desvelar-se a Si Mesmo, Deus revela-nos o seu projecto de amor para nós, o Seu desígnio de salvação. A sua Palavra é resposta de amor e luz que nos guia à plenitude da vida e do amor.
A contemplação: toda a verdadeira experiência de amor inclui momentos de contemplação. Ao entrar, pela revelação, na intimidade da pessoa que nos atraiu, a beleza agora experimentada leva à contemplação. Este êxtase de amor perante a pessoa amada é dos aspectos mais cantados pelos poetas. No caso do amor de Deus, este contemplar a pessoa amada chama-se adoração. “É o Senhor teu Deus que tu adorarás e só a Ele prestarás culto” (Mt. 4,10). Na nossa caminhada de fé essa contemplação adorante é apenas inicial. Ela intensifica-se ao ritmo do acolhimento da Palavra reveladora de Deus e dos dinamismos do Seu amor recebidos no íntimo do nosso coração, mas só no Céu ela será perfeita, pois só então “conheceremos como somos conhecidos” e veremos, não como num espelho, mas face a face (1Cor. 13,12).
No amor humano esta dimensão contemplativa exprime-se espontaneamente, ao ritmo do amor: o ficar encantado pelo outro, o sentido de gratidão tão próprio do amor, a harmonia e a serenidade interiores que brotam do amor, momentos de profunda comunhão envolvendo a totalidade do ser. Se nada disso acontece ou se tudo isso deixou de acontecer, é porque o amor foi semente que não germinou e planta que não floriu.
A intimidade: todo o dinamismo amoroso busca uma experiência de intimidade entre pessoas. É o que, em linguagem cristã, se chama a comunhão. A intimidade entre pessoas significa a revelação total de um ao outro, com o dom de todo o ser, aceitando ser conhecido, para conhecer. A intimidade realiza a experiência unitiva, expressão máxima do amor. Os sujeitos da relação amorosa encontram-se de tal modo um no outro, que se sentem como um só. “E serão dois numa só carne” (Gen. 2,24).
A experiência religiosa, na revelação judaico-cristã, resume-se à construção de uma intimidade entre Deus e o homem, entre Deus que se nos revela ser Ele mesmo uma comunhão de Pessoas, e o homem que é chamado a entrar nessa comunhão de amor. É a proposta de aliança feita por Deus a Abraão, cuja plenitude será revelada por Jesus: “E nós viremos a Ele e faremos n’Ele a nossa morada” (Jo. 14,23). Esta intimidade com Deus, quando acontece, torna-se central e decisiva, dá sentido a todas as experiências de intimidade construídas entre pessoas humanas, que encontram a sua verdade sendo reconduzidas à intimidade de Deus, e preenche toda a ânsia de intimidade do coração humano. O amor desabrocha na caridade. Veremos noutro dia que é por isso que a virgindade pode ser uma experiência de amor totalizante, realizando plenamente a ânsia de amor do coração humano.
Em todas as suas buscas e dramas de amor, o ser humano procura a experiência de intimidade. Mas tantas vezes não a consegue por fragilidade e infidelidade. Toda a forma de egoísmo, que reduz a pessoa amada à categoria de objecto possuído; toda a dificuldade em se revelar, escondendo-se nos seus segredos; toda a falta de generosidade confiante, que impede a entrega sem limites, impedem essa intimidade unitiva. Aí se experimenta que o coração humano precisa de redenção e que a autêntica intimidade só pode ser fruto da graça do Espírito, expressão do amor-caridade.
A ternura: é o dinamismo fundamental que exprime todas estas dimensões do amor. A ternura é contemplação do ser amado, é entrega generosa e totalizante, é revelação do coração, é abertura à intimidade. Ela exprime o encantamento pelo outro e é disposição de intimidade. É a expressão do amor que envolve, mais espontaneamente, a totalidade do ser, na generosidade gratuita da entrega ao outro. Onde não houver ternura, dificilmente haverá amor.
A ternura exprime uma das qualidades mais belas do amor: a bondade e a misericórdia. Amar é ser bom. A ternura é generosa, tudo dá, tudo faz pelo bem do outro, tudo desculpa, tudo perdoa. Só a ternura pode curar os corações feridos e voltar a unir aqueles a quem a infidelidade separou. Os atributos da ternura são os mesmos com que S. Paulo descreve a caridade (cf. 1Cor. 13). É por isso que, na Sagrada Escritura, a ternura é o principal atributo do amor de Deus por nós. Só assim Deus nos podia amar, sendo bom, misericordioso e cheio de compaixão.
A incapacidade de ternura é o efeito mais dramático do pecado no coração humano, aquilo a que o Evangelho chama a “dureza do coração”. A incapacidade de ternura significa a incapacidade de amar e sublinha a necessidade da transformação, pela graça, desse coração empedernido.

A redenção do amor.
4. Toda a beleza do coração humano se exprime nesta capacidade de amar. Mas aí reside, também, o rosto doloroso da aventura humana, a corrupção desse dinamismo de amor. Quanta profanação da palavra amor, que esconde o egoísmo, a insensibilidade, a incapacidade de ternura e de comunhão. No ser humano, enfraquecido pelo pecado, o seu coração precisa de ser redimido, para realizar a sua vocação de amor. Já no Antigo Testamento é claro que o chamamento à aliança com Deus supõe a renovação do coração. Os profetas denunciam a corrupção e a dureza do coração, que torna os israelitas incapazes da aliança. “Este povo tem um coração desviado e rebelde” (Jr. 5,23), “um coração incircunciso” (Lv. 26,41), “um coração mau” (Jr. 7,24). Eles precisam de invocar Deus e Lhe pedir que lhes recrie “um coração puro” (Sl. 51,12). E esta é a grande promessa da redenção, a promessa de um “coração novo”. “Eu derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; de todas as vossas imundices e de todos os vossos ídolos. Eu vos purificarei. Dar-vos-ei um coração novo e porei em vós um espírito novo, tirarei da vossa carne o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Porei o meu Espírito em vós e farei que caminheis segundo as minhas Leis” (Ez. 36, 25-28).
Esta promessa de um coração renovado viabilizará a aliança como uma união de ternura e de amor: “desposar-te-ei para sempre, desposar-te-ei na justiça e no direito, na ternura e no amor; desposar-te-ei na fidelidade e tu conhecerás o Senhor” (Os. 2,21-22).
Jesus inicia a sua pregação por um convite à conversão do coração (Mc. 1, 15), fundamental para entrar na dinâmica do Reino. Jesus, o verdadeiro e definitivo “coração novo”, realiza entre o homem e Deus o amor radical e definitivo, a plenitude da aliança. Mas misteriosamente a expressão sublime desse amor novo é a Sua morte na Cruz, o seu Sangue derramado é o sinal da aliança definitiva, e na sua entrega Ele redime o nosso coração. No baptismo mergulhamos com Ele, na morte, para ressurgirmos com um coração novo. O caminho do amor-caridade voltou a ser possível, sabendo nós que no nosso caminho de amor encontramos sempre a exigência da Cruz.
O itinerário que nos leva do amor à caridade passa pela vivência do mistério pascal, porque todos os nossos dinamismos de amor precisam de ser purificados e redimidos. O caminho do amor não é fácil, tantas vezes significa aceitar morrer para viver, superar na renúncia e no sofrimento os instintos de facilidade a que nos conduz o nosso desejo de amar. O caminho do amor é o caminho da generosidade e da coragem.

A caridade é um dom do Espírito.
5. A redenção do coração humano, radicalmente garantida no amor total de Cristo na Cruz, torna-se viva e recriadora em cada homem, através do dom do Espírito Santo, Ele próprio o amor divino personificado. É por isso que a redenção não produz fruto automático no homem; mesmo depois da morte de Cristo continua a haver corações empedernidos. É preciso unir-se a Cristo morto e ressuscitado, pela fé e pelo baptismo e abrir o coração ao Amor, para acolher o dom do Espírito transformador. Só Ele nos dará um “coração novo”, capaz de acolher o amor divino e amar com a força de Deus, na realidade começar a amar como Deus ama. Deus revela-se-nos, então, com a ternura de um Pai, bondoso e misericordioso, que nos atrai cada vez mais e se desvela progressivamente no Seu mistério. Dirigir-se a Deus como Pai só é possível pela acção do Espírito Santo (cf. Rom. 8,15). O Espírito Santo derrama nos nossos corações o amor de Deus (cf. Rom. 5,5). Esse amor tem a marca da eternidade e do definitivo. Nada deste mundo poderá jamais separar-nos do amor de Deus com que amamos Jesus Cristo (cf. Rom. 8,35ss).
Este dom do amor de Deus transforma qualitativamente as experiências de amor humano, elevadas ao nível da caridade divina. O amor do próximo é indissociável do amor de Deus. “Quem não ama o seu irmão que vê, não pode dizer que ama a Deus que não vê” (1Jo. 4,20ss). O amor humano atinge as qualidades do amor divino. “Sede misericordiosos como o vosso Pai Celeste é Misericordioso” (Lc. 6,36). É essa qualidade radical da caridade que ressalta na recomendação de Paulo aos Efésios: “procurai imitar Deus como filhos muito amados e segui a via do amor a exemplo de Jesus Cristo que nos amou e Se entregou por nós” (Efs. 5, 1-2).

6. O caminho que nos leva do amor à caridade é um longo percurso, que inclui a redenção do nosso coração e de toda a nossa capacidade humana de amar; passa pela abertura progressiva do nosso coração ao amor de Deus, realiza-se através de todos os meios sacramentais da graça. Quando me reconcilio com Deus, quando celebro a Eucaristia, quando sou confirmado pelo Espírito Santo, lanço-me nessa aprendizagem do amor novo, que me levará a amar o meu irmão como Cristo nos amou. O amor conjugal, objecto central destas Catequeses Quaresmais, é o exemplo mais claro que a vivência sacramental é o único caminho para enxertarmos sobre as raízes de um coração humano convertido, o mistério da caridade.

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa

Fonte Ecclesia

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