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Betão ameaça culto popular
2002-02-17 21:13:03

UM CULTO religioso popular, único no país, está ameaçado devido a uma urbanização que a autarquia de Alcochete vai erguer junto à povoação da Atalaia - uma zona que é palco de celebrações anuais de milhares de devotos de Nossa Sra. da Atalaia, a principal padroeira do concelho do Montijo.

As duas autarquias socialistas já estão de relações cortadas. A edil montijense, Amélia Antunes, acusa o seu homólogo alcochetano, José Inocêncio, de querer «prejudicar uma tradição secular» e, após uma troca de palavras azedas, Alcochete declarou o «corte de relações institucionais» com o Montijo.

O empreendimento em causa vai ser construído a pouco mais de 50 metros da linha fronteiriça dos dois concelhos, no limite que separa a freguesia da Atalaia, Montijo, do lugar de Fonte da Senhora, Alcochete. A designada «Quinta de Paço de Arcos» ocupará uma área de 20 hectares com mais de 700 fogos, distribuídos por 180 lotes, estando previsto que sirva de habitação a cerca de 2500 pessoas, mais do dobro da população atalaiense.

Santuário popular

O que está a incomodar os habitantes do Montijo e os estudiosos daquele culto religioso é o facto da urbanização se situar exactamente junto ao percurso utilizado pelos romeiros na altura das festividades.

Este caminho une a Igreja da Atalaia a uma fonte, onde terá aparecido a dita Senhora da Atalaia, que deu o nome ao lugar de Fonte da Senhora. Os romeiros - que são denominados «círios» - caminham ritualmente até essa nascente para se refrescarem nas águas que crêem estar «benzidas».

A presidente da Câmara do Montijo considera a construção urbanística para aquele local «inadequada, inoportuna e desnecessária» e um «gravíssimo desordenamento no espaço circundante à zona histórica da Atalaia». Amélia Antunes sublinha que «a Atalaia é um santuário reconhecido por estudiosos e aquela urbanização vai mexer com aspectos da nossa cultura e tradição que, se tiverem danos, são irreparáveis para as gerações futuras».

Na linha da frente de defesa da «cultura e tradição» da aldeia está o seu presidente da Junta, o também socialista Isidoro Santana, que adverte: «Os atalaienses acham que aquilo vai corromper tudo o que existe de tradição aqui e não vão deixar que isso aconteça.»

A Igreja foi construída no ponto mais alto de todo o concelho, a cerca de 80 metros do nível do mar, com uma vista que atravessa planícies e a lezíria, o que vem fazer jus ao nome de «atalaia», sinónimo de vigia. «Queremos continuar a olhar até ao fim da lezíria e a não ver prédios», afirma Isidoro Duarte.

Tradição secular

O antropólogo da Universidade Nova de Lisboa, Luís Marques, doutorado em Sociologia da Cultura, estudou a tradição religiosa praticada na Atalaia e destaca-a como sendo «única no país». «É um produto de religião popular alheio à Igreja Católica», sublinha. «Existe desde, pelo menos, o século XVI e impõe-se à indiferença ou reprovação do clero, constituindo uma forma de culto afastada do catolicismo, um caso paradigmático de autonomia religiosa e de continuidade da cultura ancestral.»

Luís Marques está «muito surpreendido» com a notícia da urbanização. «Será muito difícil que não prejudique o culto», declara.

O presidente da Câmara de Alcochete, José Dias Inocêncio, manifesta-se «profundamente magoado e ofendido» com as palavras da homóloga montijense. E deixa o aviso: «Vou dar conhecimento desta deslealdade inaceitável aos órgãos nacionais do PS.»«Com camaradas assim não preciso de inimigos», acrescenta.

Plano aprovado

O recém-eleito presidente alcochetano não tenciona recuar «um milímetro» no projecto e considera as críticas da autarca Amélia Antunes «uma ingerência inqualificável».

O edil de Alcochete devolve as acusações e recorda que «ela (Amélia Antunes) tem aprovados mais fogos para a Atalaia que os daquele empreendimento». Por outro lado, José Inocêncio considera o seu projecto «perfeitamente racional em termos de ordenamento do território».

No seu entender, o mais importante é «descomprimir o núcleo histórico de Alcochete», fazendo duas novas freguesias, mais afastadas deste centro, como é o caso da Fonte da Senhora.

O plano de pormenor que enquadra o empreendimento já recebeu pareceres positivos das várias entidades que se pronunciam nestes casos, desde o Ministério do Ambiente à Comissão de Coordenação Regional. Munido de todas estes apoios legais, o presidente conta aprovar o projecto em Assembleia Municipal ainda este mês e lançar a primeira pedra «até ao fim deste ano».



Fonte Expresso

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