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Novas dimensões da espiritualidade hoje
2002-01-22 21:35:28

A espiritualidade é o que há de mais especificamente humano. Porque está habitada pela liberdade. Os seres materiais regem-se pelas leis físico-químicas; as plantas, pelas leis biológicas: os animais, pelos instintos da espécie.

Com o homem surge a liberdade. Imaginemos o universo como um imenso globo com um diâmetro de milhões de anos de luz. Imenso, compacto, em interacção frenética, mas fechado ao determinismo das leis e dos instintos. Um dia, porém, do bojo desse globo imenso desprendeu-se uma “flor”, como borboleta a voar... e depois, ave com sonho das alturas... e depois um ser com vocação de Infinito. O homem. R. Bach, no livrinho encantador, Fernão Capelo Gaivota, descreve essa liberdade com poesia e muita força: “A maioria das gaivotas - diz - não se preocupam senão com aprender as leis elementares do voo: viver entre a praia e a comida. Para a maioria das gaivotas o que importa não é voar, mas comer. Para aquela gaivota, porém, o que importava não era comer, mas voar” (p. 12).
À fome e sede de autenticidade, à fome e sede de Verdade, à vocação de Infinito, que habitam a Liberdade, o cristianismo acrescentou o desejo irresistível de encontro. A meta não é a realização perfeccionista do homem, por mais alto que se coloque a fasquia, mas: o encontro, o abraço, o beijo, “amplexus”, “osculum”, como diziam os místicos. E ao desejo, o cristianismo acrescentou ainda o ímpeto da gratidão, e, por fim, por participação, a força divina que faz o Abraço Trinitário. Espiritualidade é liberdade insaciável. O homem que se deixa apanhar pela engrenagem das necessidades elementares, não é um ser livre e está exposto à lei da inércia e da degradação. Um cristão que se habitue à rotina dos mandamentos... um consagrado que se contente com a observância das leis, não tem vida espiritual. Uma Igreja que deixasse morrer o sonho da novidade... teria perdido a seiva do Espírito Santo.
Por isso mesmo, as formas da espiritualidade não são respostas às necessidades duma época. Brotam da alma da Igreja. São florações do Espírito. Podem ser a palavra para os tempos novos e para as situações diferentes, mas foi do Evangelho que o Espírito as fez subir. O que é surpreendente é que, não vindo do mundo, são a palavra exacta que o mundo esperava.
Uma característica da espiritualidade de hoje é a gratuidade. Nos últimos séculos a pregação cristã - e consequentemente a espiritualidade do povo - foi inspirada pelos novíssimos do homem. Nos meados do séc. XX e, mais decididamente, com o Concílio Vaticano II, essa temática começou a ser abandonada, dando lugar a uma compreensão do cristianismo mais centrada sobre o Mistério de Cristo. Para isso muito concorreram duas correntes que vinham já do séc. XIX, o movimento litúrgico, e o movimento bíblico. O primeiro iniciado e mantido por alguns mosteiros beneditinos: Solesmes, na França; Beuron e Maria Laach, na Alemanha: e Maredsous e Mont-César, na Bélgica. O segundo, a partir da École Biblique de Jerusalém e do Studium Biblicum de Roma. A gestação foi lenta, mas apareceu à luz nos principais frutos do Concílio Vaticano II: a Igreja como Povo de Deus, a Igreja Comunhão, a Igreja como Mistério e a Igreja Serva e Pobre. A espiritualidade já não é medo, nem desejo de perfeição, nem só gratidão, mas gratuidade. Deus é louvado pela beleza das suas obras, pela beleza da sua Acção em Jesus Cristo. A Liturgia das Horas tornou-se base de oração para muitos cristãos e cristãs; e a Palavra de Deus, base da sua meditação.
Outra linha é a adoração. O homem moderno tem alergia à autoridade. Este complexo, porém, desviriliza a liberdade. Liberdade sem lei não é liberdade; como um Deus sem autoridade não é Deus. A liberdade humana é uma liberdade habitada: por Deus e pela paixão de Deus pelo homem. Abre-se assim o campo à Grandeza, à Transcendência, à Majestade e à soberania de Deus... que é Soberania sim, mas de Amor. A difusão das casas de oração, do eremitismo, das jornadas de deserto é expressão dessa necessidade de adorar.
Outra dimensão muito presente é a comunitária. Aberta pela doutrina do Vaticano II, está emergindo na ascensão do laicado cristão, no aparecimento de comunidades inspiradas na comunidade primitiva de Jerusalém, na participação activa na liturgia, na procura da oração comunitária, em novas experiências monacais. etc.
Uma nova ascese, também. A dimensão corporal é cada vez mais cultivada na oração. Em parte, como resultado da difusão das práticas orientais de relaxação e de interiorização; e, em parte, devido à valorização que as ciências humanas deram ao corpo. A nova ascese incide agora sobre os mecanismos ferozes da existência: a tirania dos horários, a competitividade no trabalho, a correria alucinante da vida, etc.; e nas condições necessárias para o relacionamento interpessoal.
A consagração aos oprimidos. Não podemos deixar de fazer referência aos movimentos cristãos que fazem da vida uma consagração aos que sofrem, designadamente à promoção e libertação dos mesmos. A vida desses milhares de religiosos e religiosas (ou simples cristãos) é uma verdadeira espiritualidade. São Boaventura, procurando o segredo do cosmos e da história, traça duas linhas a unir os pontos cardeais. No ponto onde essas linhas se tocam - no centro - está a Cruz e na Cruz está Jesus. A imersão desses irmãos na história dos mais pobres pode ser uma forma de contemplação.

Frei David de Azevedo
Franciscano


Fonte Ecclesia

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