[Escrevi isto ontem, ainda antes dos «posts» do firefox, mas só publico agora.]
Caro s7v7n:
Não é fácil responder à tua mensagem, porque precisaria de umas centenas de páginas. Falo a sério. Porque era necessário explicar a metafísica aristotélico-tomista. Pelo menos.
Para evitar tamanha dor de cabeça, tentarei ser breve. Primeiro vou a duas questões concretas. Depois deixarei algumas notas sobre o que escreveste.
1. Hóstia, corpo de Cristo? Começo pela tua pergunta: «Então a Hóstia consagrada não se torna no real corpo de Cristo?»
Resposta:
sim. Eu já respondi a esta pergunta muitas, muitas vezes!
2. E se as hóstias e o vinho se estragam? A referência que fazes ao Orlando Fedeli constitui para mim uma preciosa ajuda! ;-) Aleluia! E ele não diz nenhuma novidade. Diz apenas o que eu já eu tinha dito mais de uma vez por cá. [Mas como o Orlando Fedeli parece ser mais ortodoxo e eu estou sob a suspeita de modernismo, os mais conservadores já podem acreditar… :-P ]
Pois, sim, o Prof. Fedeli tem toda a razão quando
diz (destaque meu):
Citação:Jesus Cristo, nosso deus, está realmente presente na hóstia consagrada com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, enquanto permanecerem os acidentes de pão. Destruídas, por qualquer razão, as aparências de pão, Nosso Senhor deixa de estar presente na hóstia consagrada
Ora bem: eu tinha dito precisamente isto, já por várias vezes. Nos «posts» de abertura deste tópico isso é referido no apartado 6, com o título «Transubstanciação ao contrário?» Aí está escrito:
Citação:«A presença de Cristo é sacramental, o que significa que “depende” da existência de um sinal visível. Se o vinho consagrado passou a vinagre e o pão consagrado, pela sua corrupção, já não pode ser considerado pão, já não temos a presença de Cristo.»
E ao leres o que o Fedeli escreveu dizes:
«Ele [Orlando Fedeli] diz que Cristo deixa de estar presente nessas hóstias [emboloradas], pois estão estragadas. Será? É possível. Nunca tinha visto uma explicação deste tipo.»
Nunca tinhas visto? Hummm…
Ora bem, que tem isto de importante?
Muito!
Significa que as visões de tipo fisicista estão enganadas e fico contente que neste ponto Orlando Fedeli sirva de ajuda. Nada melhor para ajudar a resolver certas ideias «conservadoras» que a posição «autorizada» de um conservador… [Já uma vez fiz a experiência de citar um texto de Ratzinger sem citar (propositadamente) a fonte. Como eu esperava, foi atacada a posição defendida, até que revelei a fonte )e isto foi já depois da sua eleição como Papa Bento XVI)…]
Na verdade, uma visão fisicista implicaria que a presença de Cristo seria uma questão de moléculas, por assim dizer, e não sacramental. Ora, só há presença enquanto o sinal sensível tiver as propriedades sensíveis próprias desse sinal. Se deixamos de ter pão ou vinho genuínos, deixamos de ter a presença de Cristo. Pão bolorento e vinagre não são pão e vinho genuínos. Transubstanciação ao contrário?
Nope! Isso seria numa visão de tipo fisicista.
Não é isto mais um argumento importante para deixar de ter medo do papão do símbolo?
Atenção, caso ainda não se tenha percebido: eu não sou propriamente um grande entusiasta da palavra «símbolo» e por isso quando a uso referida à Eucaristia uso habitualmente a palavra grega e com cuidado, precisamente pela ambiguidade que pode gerar. Contudo, atenção também: no contexto teológico é perfeitamente aceitável falar em «symbolon» e em presença simbólica, desde que isto esteja sob a afirmação primeiríssima: trata-se de uma presença real. Como normalmente o mal está no que se nega e não tanto no que se afirma, o mal de muitos tradicionalistas não está em querer defender a presença real (eu também a defendo), mas está em negar a impossibilidade de se falar do símbolo no contexto da Eucaristia.
É uma presença real. Real-simbólica.
4. «Algo escondido perante a substância da hóstia»? A expressão é tua e insere-se num texto que cito:
Citação:s7v7n
Então a Hóstia consagrada não se torna no real corpo de Cristo? Nunca li nada sobre isto que escreveste. Algo que está escondido perante a substância da hóstia. Então podemos dizer que apenas parte dela é corpo de Cristo. Outra parte não será. Foi o que eu entendi pela tua dissertação. Mas posso ter percebido mal.
Ora, tu referes-te ao seguinte texto que escrevi:
Citação:Alef
Portanto, o que «vês» remete sempre para uma «substância», um «algo» que está «sub» ou «trans», um «sub» ou «trans» de profundidade de realidade, não de uma realidade ausente. Seria «símbolo-convenção» se remetesse a uma realidade ausente. Não é o caso. Algo parecido acontece no Coração de Jesus: não remete para algo ausente, mas para «algo» presente no próprio símbolo.
Vamos por partes. Tu aludes a «algo que está escondido perante a substância da hóstia». Ora, eu não disse isso. A «substância» é isso a que chamas «algo escondido». É, na linguagem aristotélica, o que está sob os acidentes. Mas atenção, dás um passo em falso quando falas de «partes». Não há partes. A distinção é formal, isto é, não corresponde a uma divisão «na coisa». Os acidentes são as propriedades captáveis pelos nossos sentidos. Mas os nossos sentidos dão-nos milhentos dados diferentes: a cor, o cheiro, a textura… E cada pessoa capta os acidentes de forma diferente. Por exemplo, quando a hóstia consagrada é mostrada ao povo, cada pessoa vê aquela realidade a partir de pontos tópicos (=de lugar) diferentes. Mas «por debaixo» («sub») (em sentido metafísico) dos acidentes está aquilo que permanece «ele mesmo», que é a «substância». Mas não vemos a substância. Ora, na transubstanciação é a substância do pão e do vinho que se «converte». Mas é uma transubstanciação, não uma modificação física. O elemento «trans» daquela palavra é importante, um «trans» de «transcendental» e «transcendente». Bom, e é melhor ficar por aqui.
5. Intervalo, para não complicar. O dito anteriormente mostra algo importante: se quisermos aprofundar as questões, temos que ter consciência de que há dificuldades de vária ordem. É importante que quem tenha alguma curiosidade conheça os meandros filosófico-teológicos destas questões, mas não temos que complicar a vida por causa de conceitos complicados. Pode ser importante conhecer isto para não complicar a vida dos demais. Ou para tentar resolver algumas dificuldades.
De resto, em cada Eucaristia em que participo -- e acredito na presença real de Jesus Cristo-- eu não vivo isso a pensar no conceito de transubstanciação ou outro que me pareça teologicamente mais adequado.
Do que se trata aqui é de tentar situar a «inteligência do mistério» que celebramos. E nisto possivelmente bastará que fique claro que:
a) o ponto fundamental do dogma é que se trata de uma presença verdadeira, real e substancial;
b) a noção de «transubstanciação» é uma noção de fundo metafísico aristotélico-tomista que foi entendida pela Igreja como adequada para exprimir o dito na alínea anterior;
c) para entender um pouco o que significa a «transubstanciação» é preciso conhecer alguns pontos fundamentais da citada metafísica.
Diga-se ainda o que já disse alguma vez: o dogma é uma espécie de «rótulo» de um grande mistério que celebramos. Embora seja em si mesmo inabarcável, o mistério não é o mesmo que enigma irresolúvel. O mistério é aquela realidade na qual somos convidados a entrar e por mais que entremos sempre encontraremos sempre mais. É sempre uma fonte inesgotável.
6. «Outras» notas. {
O que se segue era o início da minha resposta. Resolvi começar de outro modo, para o que se segue encontre o seu contexto. Mesmo assim há algumas repetições, que espero me sejam perdoadas. Não tive tempo de fazer isto mais curto! :-) }
Enfim, tal como eu tinha «avisado», estas questões são deveras complicadas, porque implicam muitas noções de filosofia e de metafísica. O que eu escrevi é uma forma de esboçar uma explicação para algo que é complicado. Não creio que encontres qualquer documento da Igreja a explicar isto nestes termos. Os dogmas são definições, mas não são explicações.
O que eu tratei de dizer, sem explicar em toda a sua extensão, é que não tem muito sentido dizer que simbólico se opõe necessariamente a real. E tratei de esboçar uma linha argumentativa que mostra que é possível que o símbolo seja ele mesmo símbolo-real ou símbolo-realidade, porque é símbolo, mas de uma realidade que está contida nele, não apenas sinal de uma realidade ausente. O exemplo do Coração de Jesus é importante, pelas suas implicações bíblicas, devocionais, teológicas… Como lembra Karl Rahner, e muito bem, o coração não representa em primeiro lugar o amor, porque o coração também pode estar cheio de ódio. Rahner coloca-se no âmbito bíblico-teológico e não no da nossa moderna iconografia sanvalentinista. Na Bíblia o coração é «símbolo» de toda a pessoa. É a própria pessoa. A Bíblia está cheia desta linguagem simbólica: o coração, a mão direita, as asas, o nome, etc. Assim, a devoção ao Coração de Jesus é a devoção a Jesus mesmo; a pessoa de Jesus está presente naquele símbolo, não fora dele. Falei deste exemplo em primeiro lugar para mostrar que não é verdade que símbolo signifique sempre e necessariamente uma remissão convencional a algo ausente e, em segundo lugar, para dar a entender que isto nos permite ajudar a compreender algum aspecto da presença de Cristo na Eucaristia. Mesmo visto como «symbolon», o sinal sensível do pão consagrado não remete para uma realidade ausente, mas para uma realidade presente. A referência ao «trans» e ao «sub» são modos de «esboçar» uma compreensão dessa presença. Mas não a explicam em sentido pleno.
Então:
- É necessário dizer o mais importante: é uma presença real.
- Com isto já se evita pensar que possa ser apenas um símbolo no sentido de evocação convencional de uma realidade ausente.
- Mas há que evitar o outro extremo, que é aquilo a que chamei o fisicismo ou fisicalismo.
É uma presença real, mas sacramental. Não é física no sentido habitual que damos a este termo.
[Nota: à palavra «física» coloco sempre a ressalva «no sentido habitual que damos ao termo», porque é possível, sob certa perspectiva, dizer que é um presença física, mas este não é o sentido habitual.]
Alef
Editado 2 vezes. Última edição em 27/05/2007 21:32 por Alef.