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Tradição/Um museu futuro Presépios da fé e do mundo 2005-12-29 22:09:40 A afirmação pode parecer estranha, após algumas horas a falar sobre presépios e a ver o gosto com que o franciscano capuchinho frei Lopes Morgado olha para os exemplares da colecção de 687 presépios de 51 países do mundo, os olhares que coloca em cada peça, a beleza que retira de alguns deles. Apesar de ser o principal responsável deste museu em gestação, Lopes Morgado afirma, convicto: "Não me sinto bem como conservador do passado, sou mais de atirar coisas para a frente."
Vem-lhe o gosto desde a infância, desde o tempo em que, com cinco escudos, se "comprava um presépio inteiro". Este era indispensável no Natal, na casa modesta de agricultores de Areias de Vilar (Barcelos). Filho mais novo de nove filhos, José Joaquim Lopes Morgado, actualmente com 67 anos, nunca recebeu prendas enquanto foi miúdo.
Os presépios talvez sejam, agora, uma forma de compensar presentes que, nesses tempos difíceis, não houve. Para o pai, diz Lopes Morgado, "sem presépio não havia Natal". Mas eram os filhos, sobretudo os mais pequenos, que compunham a representação da Natividade. O lugar escolhido era a lareira ou o lagar do cincho, onde se prensava o bagaço.
Tudo era construído, que não havia nem os cinco escudos: casca de pinheiro para a gruta, musgo, bonecos com bugalhos de carvalho, areia do rio Cávado para os caminhos, azevinho do campo e uma estrela de papel no cimo do presépio, que tinha direito a inauguração solene antes da consoada.
Na vida religiosa (Lopes Morgado entrou para os franciscanos capuchinhos em 1954), foi juntando presépios que lhe ofereciam. "Sempre me deram presépios e eu sempre dei."
Nasceu assim a colecção que, com o tempo, deu origem ao Museu do Presépio, no Centro Bíblico dos Capuchinhos, em Fátima. Quando foi para ali viver, em 1993, frei Lopes Morgado levava consigo apenas alguns exemplares. Tudo o que até então lhe tinham oferecido já ele oferecera, por sua vez. Sobrava um, em barro, de José Franco, e mais meia dúzia.
Dois anos depois, já a colecção tinha crescido para mais de cem peças. Organizou uma pequena exposição, chamada "O Evangelho da Vida". O número de peças foi aumentando, quase sempre com a colaboração de pessoas amigas - os frades não compraram mais de 30 exemplares. "Se eu tivesse guardado alguns dos que já me tinham dado, a colecção seria hoje ainda melhor", diz.
O projecto de museu foi ganhando fôlego. Não obstante, actualmente, ser possível ver os quase 700 presépios, os capuchinhos pensam dotar o museu de um espaço mais amplo, com abertura permanente ao público (agora, as visitas são possíveis, mas tem que se tocar à porta).
Pode coleccionar presépios pela arte, pela devoção, pela curiosidade das múltiplas formas e materiais. Lopes Morgado - escreveu no catálogo da exposição "Presépios em Barro", do Museu da Olaria, em Barcelos - vê-o como "uma bela síntese de história, fé e cultura". Jesus Cristo "é um acontecimento situado na História". O seu nascimento foi registado nos evangelhos não como "um relato frio e científico dos acontecimentos", mas para que as pessoas acreditem "que Jesus é o Messias, o Filho de Deus" como diz o Evangelho de S. João. E o autor de cada presépio tenta transmitir, ao mesmo tempo, "o acontecimento do Natal de Jesus e a sua mensagem". Dá-se, assim, um "fenómeno de apropriação criadora e de inculturação".
É este mistério da fé do mundo, traduzida no presépio, que Lopes Morgado descobre na colecção. Desde a multiplicidade de materiais usados até às formas de representação: apenas a cena da Natividade ou pormenores da vida social de cada tempo ou lugar. Desde as cores dos presépios latino-americanos até à singeleza africana, passando por uma peça da Bahia (Brasil) em que Nossa Senhora faz recordar Carmen Miranda, pelo S. José com cabelo à "punk" (Equador) ou pela elegância dos barros de Vítor Lopes (Caldas da Rainha).
Quando se entra, o visitante depara com um presépio como um teatro da vida, de Ayacucho (Peru), que se divide em quatro andares. Destaca-se pela cor e pelas representações sociais: de cima para baixo, vê-se a Natividade, tocadores de diversos instrumentos musicais tradicionais, profissões artesanais (tecelão, carpinteiro) e cenas agrícolas. Este é o único presépio da colecção feito em miga de pão seco, embebida em cola. Os materiais traduzem a inculturação da mensagem. De África vêm madeiras como o pau-preto ou o jacarandá (e o mármore, da África do Sul), de Portugal predominam os barros e as cerâmicas. Da Palestina e Israel vêm presépios em oliveira e madrepérola. Há cristais, porcelanas e cerâmicas (uma delas, da importante casa Lladró, de Valência, Espanha). Também materiais mais raros como a serapilheira (Algarve), a cera de abelha (Itália), a pedra huanamanga (Peru), areia do Sara (Senegal) ou papel maché (Filipinas).
Os preferidos? Frei Lopes Morgado volta-se para a peça mais antiga (talvez mais valiosa) da colecção: uma miniatura, de 1949, que reproduz um presépio barroco do século XVIII, de Nápoles (inspiradores dos da Basílica da Estrela ou da Madre de Deus, em Lisboa). Feito em "biscuit", "vale pela dimensão artística" e pela representação da vida social do tempo, própria do barroco.
A segunda é portuguesa, em cortiça, de 2002, do artesão Isidro Verdasca, 83 anos, de Évora. "É a antítese do de Nápoles, pela grande variedade, pela minuciosidade de pormenores e pelo trabalho popular", comenta. Representando a vida do campo - carro de bois, lenhadores, um amolador -, retoma uma diversidade de elementos invulgar em trabalhos contemporâneos.
Multiplicou-se a representação do presépio a partir da representação de S. Francisco de Assis, em Greccio, na noite de Natal de 1223 - embora houvesse já representações anteriores. Lopes Morgado recorda um sarcófago do século IV, hoje visível na Basílica de S. João de Latrão, em Roma, que mostra o Menino deitado num berço de palha; além de várias adorações dos magos em catacumbas romanas e um grande conjunto de mosaicos de vários séculos, na Basílica de Santa Maria Maior.
Actualmente, vários presépios ligam o nascimento de Jesus à sua paixão e morte - na colecção alguns representam essas diferentes etapas da vida de Jesus. Lopes Morgado sublinha o seu alto valor simbólico: "É por causa da morte e da ressurreição que o Natal de Jesus se torna importante."
A 21 de Dezembro de 2002, Lopes Morgado escreveu um poema, depois publicado no livro "Em Minha Memória" (ed. Difusora Bíblica): "Parece que, outra vez, Jesus Menino/ terá, para nascer, que sair fora/ da aldeia panglobal banalizada./ Ou não? Ou é na gruta desta margem/ que ele, hoje, vai nascer? Onde o Natal?"
à margem
Para visitar
O Museu do Presépio pode ser visitado, embora ainda nas duas salas apertadas que lhe servem de abrigo provisório. Basta dirigir-se à Av. Beato Nuno, 407, em Fátima (10h30-13h00 e 14h30-18h00) ou telefonar para o 249 539 390. Parte da colecção esteve em exposição em Barcelos ou Évora e muitas escolas visitam o museu. A colecção, que será uma das maiores de Portugal (atrás das de Rui Sequeira, de Portalegre, e de Fernando Canha da Silva, de Évora), inclui, além dos presépios, pratos, medalhas e "Fugas para o Egipto", entre outras peças.
Poesia
A relação espiritual de Lopes Morgado com o tema do Natal, que tem a ver com o franciscanismo da ordem a que pertence, completa-se com quatro dos livros de poesia que escreveu. Responsável da revista "Bíblica", Lopes Morgado é também autor de mais de duas dezenas de livros e de crónicas e programas de rádio e televisão.
António Marujo
Fonte Público
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