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 As normas na Igreja e sua aplicação pastoral
2005-03-07 22:42:07

A propósito do caso do Padre Nuno Serras Pereira, reflexão de um outro franciscano.

1. A surpresa de muitos – que é isto?
Há dias, o Padre Nuno Serras Pereira, sacerdote católico e membro da Ordem Franciscana, surpreendeu muitos pela cobertura mediática desencadeada pela publicação de um anúncio. As reacções foram aparecendo em número considerável. D. José Policarpo, Patriarca de Lisboa e Fr. Isidro Lamelas, Provincial dos Franciscanos, também se pronunciaram sobre o assunto.
Que aconteceu? O que está em causa? Que pensar de tudo isto? Qual o seu significado eclesial e franciscano? É nosso objectivo tecer uma resposta no âmbito de perguntas como estas, situando-nos numa perspectiva de fundamentação filosófico-teológica.

2. O que aconteceu?
Tudo começou com a publicação de um anúncio da autoria do Padre Nuno num dos nossos diários com o título – “Participação aos interessados” – onde se diz que, segundo o cânon 915 do Código de Direito Canónico, “está impedido de dar a sagrada comunhão eucarística a todos aqueles católicos que manifestamente têm perseverado em advogar, contribuir para, ou promover a morte de seres humanos inocentes”. Depois são enumerados os meios: diversas pílulas, dispositivo intra-uterino (DIU), pílula do dia seguinte, fecundação extra-corpórea, selecção embrionária, crio-conservação, experimentação em embriões, investigação em células estaminais embrionárias, redução fetal, clonagem, legalização do aborto (incluindo a lei em vigor) e eutanásia. A última parte é mais de carácter espiritual e de convite “ao arrependimento e à retractação pública”.

3. Significado e importância de duas reacções
Entre tantas reacções, na sua maioria de gente da Igreja, manifestando a sua discordância com este anúncio, destacamos aqui, pelo seu significado e importância, as declarações de D. José Policarpo e o texto enviado à Agência Ecclesia pelo Provincial dos Franciscanos.
D. José (segundo a transcrição da Rádio Renascença) diz fundamentalmente três coisas: o carácter pessoal do anúncio; o exagero do mesmo (não é uma boa atitude pastoral); e a não concordância entre a posição do Padre Nuno e a posição oficial da Igreja.
O Provincial dos Franciscanos, Fr. Isidro Lamelas, refere sobretudo quatro coisas: o carácter pessoal da iniciativa; a não concordância com esta forma de defender a vida; a sintonia da Ordem Franciscana com a posição oficial da Igreja; e o compromisso na luta pela vida seguindo a via da caridade, da misericórdia e da comunhão.

4. O que está em causa?
Ao analisarmos o texto do anúncio, vemos que nele se misturam coisas de uma forma nada esclarecedora daquilo que é a posição oficial da Igreja sobre estes assuntos. Há clarificações obrigatórias a fazer para uma correcta apreciação moral e consequente tratamento do ponto de vista jurídico e pastoral que aqui não são feitas, tais como: meios contraceptivos e abortivos, o que está realmente em causa nas diversas formas de fecundação assistida, nas técnicas aplicadas à vida na fase embrionária, o que estamos a dizer quando falamos de eutanásia, etc.
Pelo seu estilo, não é um texto de carácter meditativo sobre a vida. Pela ausência de clarificações e distinções necessárias, não é um texto de reflexão ética. Pela não competência e inadequada fundamentação, não é um texto dotado de normatividade jurídica (a Igreja tem lugares e métodos próprios para fazer interpretações canónicas; as matérias em causa não podem ter este tipo de tratamento do ponto de vista jurídico; o cânon referido é abusiva e inadequadamente utilizado). Por tudo isto, poder-se-á dizer que textos como este não têm qualquer razão de ser dentro da acção pastoral da Igreja.
Mas, deixando de lado todas estas questões de carácter mais técnico, é oportuno centrar-nos numa problemática que nos parece fundamental dentro de tudo isto: trata-se da função das normas dentro da Igreja, no seu âmbito objectivo, e na passagem ao plano subjectivo, ou seja, a sua aplicação pastoral.

5. As duas dimensões da experiência moral
Sempre que a pessoa se deixa interpelar, implícita ou explicitamente, pelo sentido daquilo que faz, acontece a experiência moral. Isso surge ao nível da consciência, quando, sob a forma de valores, interioriza as normas. A pessoa interroga-se: que é bom? que devo fazer?
Na experiência moral, há duas dimensões que se relacionam: a objectiva e a subjectiva. Na dimensão objectiva, estão os valores e as normas. As normas morais estão ao serviço dos valores, não têm razão de ser por elas mesmas, servem para que eles se evidenciem. Na dimensão subjectiva, está a consciência de cada pessoa, uma realidade sempre aberta, em permanente formação, em reciprocidade de outras consciências, deixando-se interpelar pela verdade dos outros.

6. A experiência moral segundo o Magistério da Igreja
A aplicação pastoral das normas objectivas acontece dentro da dinâmica da experiência moral. O Magistério da Igreja tem dito isso por diversas vezes. Vejamos alguns exemplos:
Com a publicação da encíclica “Humanae vitae” do Papa Paulo VI, sobre o exercício da paternidade e maternidade responsáveis, em 1968, muitas Conferências Episcopais, além da parte pastoral da encíclica, ainda acrescentaram muitos elementos para uma correcta aplicação prática das normas em causa. Por exemplo, os Bispos franceses (no nº 16 do seu texto) referem-se claramente à não culpabilidade moral em muitos casos de contracepção (muitas destas intervenções das Conferências Episcopais, entre as quais a da Conferência Episcopal Portuguesa, foram reunidas em livro: A família – serviço à vida, Secretariado Geral do Episcopado/Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1994).
Ainda sobre a “Humanae vitae” e sua aplicação, temos um texto de particular importância da Congregação do Clero dirigido à Diocese de Washington como resposta ao conflito surgido entre o Cardeal O’Boyle e parte do seu clero (1971). Este texto, infelizmente pouco conhecido (aparece no Enchiridion Vaticanum 4, 678-706; há uma tradução portuguesa da parte doutrinal no livro de José António da Silva Soares, A castidade conjugal no Magistério da Igreja, Editorial Franciscana, Braga, 1978, pp. 135-137), além de apresentar a parte normativa da “Humanae vitae”, desenvolve a questão relacionada com a consciência. Transcrevemos apenas algumas afirmações: “As particulares circunstâncias que rodeiam um acto humano objectivamente mau, embora o não possam tornar um acto objectivamente virtuoso, podem torná-lo não culpável, menos culpável, ou subjectivamente defensável”. E ainda: “Em última análise, a consciência é inviolável e ninguém deve ser forçado a agir de maneira contrária à sua consciência”. Depois refere-se sobretudo a prudência pastoral nestes casos, concretamente quanto à celebração dos sacramentos.

7. O Magistério actual
Esta forma de ver as coisas está bem presente nos nossos dias. Neste sentido, podemos citar um texto publicado no L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano (trata-se de um texto não assinado e por isso não está ligado a uma pessoa concreta, mas a um pensamento mais de carácter geral e eclesial) intitulado: “A norma moral da ‘Humanae vitae’ e a tarefa pastoral” (está publicado na edição portuguesa deste jornal de 5 de Março de 1989, pp. 1-2). E é nesta mesma linha que temos a encíclica “Evangelium vitae”, de João Paulo II (1995), sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana. Esta encíclica, que não é um texto de carácter normativo, mas um “evangelho”, um anúncio, uma meditação sobre a vida (cf., por exemplo, os números 6 e 30 deste documento), revela sobretudo uma sensibilidade pastoral necessária para uma correcta aplicação de qualquer princípio moral. Há assim uma “pedagogia da vida” (ver a este propósito todo o último capítulo – “Para uma nova cultura da vida humana”. Dentro desta mesma linha, ainda recentemente se pronunciaram os Bispos portugueses: Meditação sobre a vida (Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, 5 de Março de 2004 – cf. Agência Ecclesia).

8. Significado eclesial e franciscano
Uma última palavra acerca do significado eclesial e franciscano de tudo isto. Em Igreja, as acções de carácter pessoal como esta arriscam-se a ter apenas um efeito mediático como aconteceu; não têm qualquer relevância para a vida da mesma Igreja. Dito por outras palavras, foi uma acção de um homem ligado à Igreja, mas não uma acção da Igreja. A este propósito é muito claro o texto da encíclica “Evangelium vitae”: “somos um povo da vida e pela vida, e assim nos apresentamos diante de todos... somos enviados como povo”, e é nesta condição que cada pessoa tem a sua parte de responsabilidade (cf. números 78 e 79). Não basta uma boa intenção para tornar uma acção realmente eclesial.
Por tudo isto, nos parecem de particular significado e autoridade eclesial as reacções de D. José Policarpo e do Fr. Isidro Lamelas. Estamos mais habituados a ver reacções do Magistério da Igreja quando alguém tem uma posição com um carácter demasiado progressista, mas também posições em sentido contrário devem merecer o mesmo tipo de reparo, como agora aconteceu.
É como povo da vida e pela viva que todos somos enviados, tal como S. Francisco de Assis bem entendeu, não excluindo mas incluindo (comungando!) todos num mesmo itinerário de fé, experienciando, no encontro salvífico com Jesus Cristo, o amor de Deus Criador e Pai de todos e de tudo.

Frei Hermínio Araújo, OFM





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