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Catequese do 2.º Domingo da Quaresma de D. José Policarpo : «É possível escutar a Palavra contemplando as suas obras»
2009-03-02 22:20:31

Introdução
1. Jesus ensina os seus discípulos a reconhecer aqueles que entraram na dinâmica do Reino dos Céus, os verdadeiros ouvintes da Palavra, pelos seus frutos, isto é, pela mudança que a Palavra realizou nas suas vidas. “Pelos frutos se conhece a árvore” (Mt. 12,33). Não é um convite a julgar as pessoas, mas a identificar os frutos da Palavra de Deus e assim chegar, pelo louvor, ao Deus da Palavra. Esse foi, em toda a história do Povo de Deus, um caminho seguro para reconhecer o Senhor nas maravilhas que realizava em favor do Seu Povo. A história da humanidade passa, assim, a estar semeada pela Palavra de Deus, não apenas porque ela foi pronunciada e poucos a escutaram, mas sobretudo pelas maravilhas que ela realizou e que falam, mesmo àqueles que nunca escutaram a Palavra pronunciada pelos Profetas. E porque as obras de Deus são fruto da Sua Palavra, chegar a louvar o Senhor através dessas obras é outro caminho para escutar a Palavra. As obras são outra linguagem em que se comunica aos homens a Palavra eterna de Deus.

Nesta Catequese, vamos percorrer as várias maravilhas de Deus, que, segundo a Sagrada Escritura, são fruto da Palavra, e aprender a reconhecer nelas o Senhor e a Sua Palavra.


A criação

2. Segundo a Escritura, toda a criação é fruto da Palavra de Deus. Deus disse e fez-se. Foi respondendo a essa Palavra eterna que passaram a existir o céu e a terra, a luz, o sol e a lua, a infinita variedade de seres vivos, o homem, plenitude da criação. Os espíritos simples e abertos podem, ao contemplar a beleza e a harmonia da criação, chegar ao seu Criador e reconhecer em cada criatura a marca da Palavra que a criou. Este perscrutar da criação para adorar o Criador, atravessa toda a história da salvação. Esse perscrutar da criação dá origem aos mais belos textos da Escritura, como são os Salmos que descobrem aí o poder criador da Palavra “que vence o nada e cria o ser”. O salmista canta: “Pela Palavra do Senhor foram criados os céus, pelo sopro da Sua boca todo o seu exército (…) porque Ele falou e tudo foi feito, Ele mandou e tudo existe” (Ps. 33,6-9). Tenho perante mim a Mensagem dos Padres Sinodais que refere: “Temos, assim, uma primeira revelação «cósmica», que faz com que a criação se assemelhe a uma imensa página aberta diante de toda a humanidade, que nela pode ler uma mensagem do Criador: «Os céus narram a glória de Deus; a obra das Suas mãos o firmamento a anuncia. O dia ao dia comunica a mensagem e a noite à noite transmite a notícia. Sem linguagem, sem palavras, sem que se ouça a sua voz, toda a terra difunde o seu anúncio e até aos confins do mundo a sua mensagem» (Sl. 19,2-5)” .

Jesus, ao ensinar os discípulos, ensina-os a ler, nesta página aberta que é a criação, a bondade providente de Deus. Convida-nos a contemplar as aves do Céu e os lírios do campo, cuja abundância e beleza são fruto da providência de Deus (cf. Mt. 6,25ss).

São Paulo não desculpa os pagãos de não conhecerem o Deus verdadeiro, pois Ele revela-se-lhes na criação: “O que se pode conhecer de Deus é-lhes manifesto, porque Deus lho manifestou. O que é invisível desde a criação do mundo, manifesta-se à inteligência através das suas obras, o seu poder eterno e a sua divindade” (Rom. 1,19-20). Portanto, a criação é para os pagãos caminho de revelação. E, na mesma Carta junta, num hino à sabedoria de Deus, a Criação e a Redenção: “O abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis os Seus decretos e incompreensíveis os seus caminhos! Quem, com efeito, alguma vez conheceu o pensamento do Senhor? Quem alguma vez foi o seu conselheiro? (…) Porque tudo é d’Ele, por Ele e para Ele. A Ele seja dada glória eternamente” (Rom. 11,33-36).


3. Esta página, que tem as dimensões do Universo, da revelação cósmica, fala-nos, antes de mais, da grandeza infinita de Deus. O homem levou milénios a ter consciência da grandeza do seu próprio planeta. A ciência moderna começou a levantar o véu sobre a grandiosidade do Universo em cuja infinitude gira, como ponto perdido, o planeta que habitamos. Esta grandeza da criação é cantada no Livro de Job (cf. Job. 38-41) e leva Job, diante dessa grandeza, a reconhecer a sua pequenez de criatura. A grandiosidade da criação abre-nos para o mistério do Deus infinito, criador e Senhor de toda a criação.

A grandeza da criação está ligada à sua beleza. Diz o Livro da Sabedoria “que a grandeza e a beleza das criaturas fazem contemplar o Seu autor” (Sap. 13,5). A beleza é, certamente, a dimensão mais eloquente da criação e abre-nos para a beleza de Deus, leva-nos mesmo a perceber que Deus é beleza. Diz o mesmo Livro da Sabedoria que o Autor da beleza é que criou as coisas belas (cf. Sap. 13,3).

Conto-vos um facto da minha experiência pessoal que nunca mais esqueci. Um dia em que regressava a Lisboa, o avião preparava-se para aterrar sobrevoando o rio e a cidade. Estava um pôr-do-sol radioso de luz e de cor. O piloto do avião convidou-me para contemplar esse espectáculo no “cockpit” do avião. Homem sensível, mistura de cientista e de artista, de pé, fez um autêntico hino à maravilha da luz que, segundo ele, encerrava o segredo de todos os seres. E rematou dizendo: perante esta beleza é difícil dizer que Deus não existe. A luz que encerra o segredo de todos os seres. Pensei que a luz é, na natureza e na arte, uma expressão principal da beleza; o meu pensamento voou até à liturgia pascal, àquele anúncio da luz, que inunda a nova criação da luz definitiva, Cristo nosso Redentor.

Deus é beleza! É na beleza das criaturas que tocamos que elas são obra do criador, a beleza eterna e a luz sem ocaso. Quem for sensível à beleza, descobrirá a beleza de Deus criador, na luz, na grandeza de paisagens com horizonte infinito, na majestade das montanhas e na infinitude do oceano, num sorriso de criança, na ternura de um gesto, na simplicidade de estender a mão ao seu irmão.

A grandeza e a beleza exprimem-se na harmonia da criação. A harmonia do Universo e essa maravilha que é o homem, e que os cientistas vão conhecendo, extasiados, cada vez mais, face à harmonia de um corpo dinamizado pelo espírito, verdadeira imagem da harmonia de Deus, que pudemos ver e tocar em Jesus Cristo, homem divino (cf. 1Jo. 1,1-3).

A História da Salvação

4. Na Bíblia a narração da criação aparece-nos como a primeira página de uma longa história, “o primeiro acto do drama que, através de manifestações várias da bondade de Deus e da infidelidade dos homens constitui a História da Salvação” . A criação, mensagem universal de revelação para todos os homens, alarga o horizonte da revelação e da história da salvação que abraça toda a história humana. Esta universalidade, já presente na teologia de Israel, torna-se clara na “nova criação” fruto da redenção de Jesus Cristo, Ele que é a plenitude da criação.

A história é o cenário da criatividade da Palavra e por isso esta encerra o segredo do sentido da história e da sua interpretação. A mesma Palavra que criou o mundo origina acontecimentos em favor do Povo de Deus. Ela é uma Palavra continuamente em acção, ela é acontecimento. É através dos acontecimentos que Israel toma consciência do amor salvífico de Deus: a passagem do Mar vermelho, o maná e as codornizes como alimento no deserto, a queda das muralhas de Jericó, as diversas vitórias sobre o inimigo. O presente e o futuro de Israel dependem desta Palavra criadora, os Profetas convidam o povo a ver Deus presente e em acção ao contemplarem as obras que realiza através da Sua Palavra. E quando a história acontece só a partir da palavra humana de homens que se recusam a escutar a Palavra de Deus, o povo entra no caminho da desgraça e da derrota. A palavra dos profetas, se proclama a fidelidade de Deus, sempre presente na promessa de novas intervenções no futuro para quem acredita no poder criador da Palavra, também denuncia a infidelidade. A Palavra torna-se juízo e condenação; a Palavra de Deus é a consciência de Israel, é a luz que indica o caminho da fé, da justiça e da paz, a força que suscita a esperança. A profissão de fé do judeu crente e piedoso é a memória dos feitos que Deus, através da Sua Palavra realizou em favor do Seu Povo. Não é um enunciar de verdades, mas o recordar das acções salvíficas de Deus (cf. Deut. 4,9ss; 32ss; 26,5ss). É esta memória dos feitos salvíficos da Palavra que deve levar os crentes de Israel à circuncisão do coração e a adorar a Deus Seu salvador (cf. Deut. 10,12ss).

Mas a expressão máxima da criatividade salvífica da Palavra acontecerá na plenitude dos tempos, quando a própria Palavra eterna se torna carne e acontecimento decisivo da História da humanidade. O que se passa em Maria, naquele dia em que o Anjo a visitou é a mais sublime acção da Palavra de Deus em favor do Seu Povo, cujo horizonte é agora toda a humanidade. A encarnação do Verbo no seio de Maria é o acontecimento revelador de Deus e do Seu amor. É um acontecimento da história, carregado de sentido e gritante de revelação. Nunca mais se poderá escutar Deus e conhecê-l’O sem ser a partir daquele Menino que foi gerado no seio de Maria pela Palavra eterna de Deus. Maria é Mãe com toda a potencialidade feminina de maternidade, mas ela concebeu por força da Palavra. O Anjo, que é o mensageiro de Deus, disse-lhe: “tu conceberás e darás à luz um Filho” (Lc. 1,31). E Maria aceita, por obediência total à Palavra de Deus: “Eu sou a Serva do Senhor; aconteça em mim o que a Tua Palavra anuncia” (Lc. 1,38). É impossível penetrar neste mistério da concepção virginal de Jesus, se não a situarmos na história de um Povo habituado a acreditar na Palavra de Deus e a vê-la fazer maravilhas. Nesta maternidade, fruto da Palavra, realiza-se o encontro entre a acção da Palavra na criação e na história da salvação. O que se passa em Maria tem a força do acto criador: Deus disse e aconteceu. Deus inaugura a nova criação. Mas a Palavra age em Maria ao ritmo da história da salvação. A Palavra será criadora se for acolhida na obediência da fé. Aquele acontecimento será, para todo o sempre, fonte de sentido para a Igreja, onde a Palavra exercerá o seu poder criador sempre que for acolhida na obediência da fé.

É por isso que, para a Igreja, é possível chegar ao conhecimento de Deus e do Seu amor salvífico, contemplando as obras de salvação que vai realizando em nós, na Igreja, na humanidade. Esta acção da Palavra, no anúncio da Igreja, na acção sacramental, é obra de Jesus Cristo, a Palavra encarnada, e realiza-se pela força do Seu Espírito que Ele comunica à Igreja.

Contemplar as obras da Palavra, numa economia da graça

5. Já referimos como a Igreja primitiva teve a alegria de ver a Igreja crescer, fruto da eficácia da Palavra: a fecundidade da pregação apostólica, o nascer de comunidades, a paixão evangelizadora dessas comunidades, a força da comunhão (koinonia), a esperança escatológica dos “novos céus e nova terra”, chave da compreensão definitiva da história. Reconhecer essa acção da Palavra e do Espírito é abrir-se ao conhecimento de Deus em Jesus Cristo, e à compreensão definitiva do desígnio de salvação, mistério escondido desde séculos em Deus, e agora revelado aos crentes, protagonistas dessa nova gesta maravilhosa da Palavra (cf. Rom. 12,25-26; Col. 1,26-27; Efs. 3,3-12).

Este mergulhar em Deus, contemplando a acção da Sua Palavra e do Seu Espírito na Igreja e em cada um de nós, é um caminho perene de louvor e de adoração. Supõe a purificação de um coração crente, para não atribuir ao engenho humano aquilo que é iniciativa maravilhosa da graça. Convida-nos continuamente a uma meditação sobre a Igreja, mas também sobre a vida de cada um de nós. Pode ser mais importante que uma compreensão doutrinal o reconhecermos a acção de Deus em momentos concretos da nossa vida, momentos em que Deus ouviu a nossa oração e realizou o que lhe pedimos, circunstâncias em que Deus mudou o ritmo da nossa vida, nos chamou, nos fortaleceu e conduziu, nos enviou como cooperadores na obra da salvação.

Por outro lado esta perspectiva faz-nos tomar consciência do drama do nosso pecado, ao não acolhermos a Palavra na obediência da fé, não permitindo que ela realize em nós a obra da salvação. Também na Igreja e em nós, a Palavra é juízo, põe a claro a diferença entre fidelidade e infidelidade, é a fonte válida da dimensão ética da vida.

† José, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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