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Deus é feio ou belo?
Escrito por: firefox (IP registado)
Data: 08 de July de 2010 16:06

Uma pessoa muito querida (rs) me presenteou com o texto desse artigo.

Aconselho a leitura que é muito interessante. Na sequência trago o texto para cá, e espero logo acrescentar alguma coisa mais. Vou começar a leitura do livro "A porta da beleza - por uma estética teológica" e depois relato alguma coisa. Algumas "provocações" adicionais:

- A beleza quenótica do Crucificado na teologia de Bruno Forte: [www.pucrs.br]
- A beleza na telogia de Ratzinger (a página saiu do ar, mas vou colar o texto no próximo post)
- Se alguém se animar a escrever sobre Von Balthasar, seremos muito gratos :)

Paz e Bem



Editado 1 vezes. Última edição em 08/07/2010 16:26 por firefox.

Re: Deus é feio ou belo?
Escrito por: firefox (IP registado)
Data: 08 de July de 2010 16:23

A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger

Publicado 2009/07/13
Author : Charles Morerod [1]
Fonte: Arautos do Evangelho (www.arautos.org)

Introdução

O teólogo, e também músico, Ratzinger fala sobre a beleza em muitas de suas obras e em diversos contextos. Retomo aqui alguns aspectos de seu pensamento:

- A beleza, antes de tudo, é coerência: coerência da criação, da revelação da tradição e coerência também do homem receptor da obra divina.
- A beleza cristã não é superficial. Inclui a cruz do Filho encarnado e com ela a verdade sobre a dor.
- Uma beleza não aberta a Deus reclui o homem nele próprio e é capaz de levá-lo ao desespero ou a um espiritualismo sem estreita relação com Deus.
- Os crentes devem mostrar a beleza de sua fé em autênticas cerimônias, sobretudo em sua liturgia.
- Dentro ou fora da liturgia, a música e as imagens nos ajudam a captar a coerência sobre-humana da criação.

A beleza enquanto coerência

A beleza é apresentada pelo teólogo Ratzinger enquanto coerência. Já os antigos filósofos sentiam a coerência do mundo como uma indicação da presença de uma inteligência na organização do mundo. [2] As ciências contemporâneas pressupõem também uma coerência. A ordem do mundo é atribuída pelo crente a uma causa livre e bela. Essa convicção não é somente uma idéia, mas também, a fonte de uma crença essencial:

A física, a biologia, as ciências naturais em geral nos forneceram um novo relato da criação, inaudito, com imagens grandiosas e novas, que nos permitem reconhecer a face do Criador e nos fazem saber novamente: sim, no princípio e no fundo de todo ser existe o espírito criador. O mundo não é produzido pela obscuridade e pelo absurdo. Ele deriva de uma inteligência, de uma liberdade, deriva de uma beleza que é amor. Este reconhecimento nos infunde a coragem que nos permite viver, que nos torna capazes de enfrentar confiantes a aventura da vida. [3]

A ação criadora faz um mundo belo e coerente. O próprio Deus criador se revela, e a revelação é também bela e coerente:

Hebreus e cristãos devem testemunhar aquele Deus único, o criador dos céus e da terra, e este testemunho deve ser dado em toda a amplitude que está formulada de modo exemplar no salmo 19: a luz da oração física (material), o sol, e a luz espiritual, a lei de Deus, são inseparáveis. Na palavra de Deus e no seu esplendor se exprime, por todo o mundo, o próprio Deus de quem dá testemunho o sol, a lua e as estrelas e a respeito de quem fala a beleza e a plenitude da criação. "O sol é a honra do céu, mas tua lei o é muito mais, Senhor..." [4]

A beleza da fé se encontra de modo particular nos evangelhos e na tradição, ou mais precisamente na junção deles:

Considero os sinópticos no seu complexo e na sua unidade como algo incomparavelmente belo, exatamente porque não são composições individuais, mas porque, com eles, vos advertimos a corrente da tradição transmitida pela Igreja viva e depois solidificada gradualmente em um texto unitário. [5]

Em continuidade com os evangelhos, o Catecismo da Igreja Católica manifesta a coerência da revelação e da sua transmissão através dos séculos:

Quem buscasse no Catecismo um novo sistema teológico ou novas hipóteses ousadas ficaria desiludido. Esta forma de "modernidade" não estava nos seus projetos. Ele, ao contrário, oferece - colhendo da Sagrada Escritura e da multiforme riqueza da tradição, e inspirando-se no concílio Vaticano II - uma visão orgânica da totalidade da fé católica, que precisamente enquanto totalidade é "bela", de uma beleza na qual reluz o esplendor da verdade. [6]

Criação - revelação - transmissão da revelação: isto junto forma uma unidade. Os crentes se encontram dentro e assim são ligados ao princípio unificante de tudo. Quem percebesse a coerência desse conjunto através dos tempos, ou seja da tradição, se sentiria atraído por este fato em si, ainda que dele não entendesse todos os matizes:

Deve se ver ainda mais a força dirompente da tradição não adulterada. A sua beleza e a sua grandeza tocam também àqueles que não sabem elaborar e entender racionalmente todos os detalhes. [7]

Entre as coisas criadas, o homem é um sinal particular da Beleza divina:

O homem, entretanto, é um reflexo daquela beleza originária que é Deus [...]. Entre as coisas ótimas estava também o homem, ornado de uma beleza largamente superior a todas as coisas belas. [8]

Sendo o homem naturalmente belo, não é de se espantar que possa tornar-se especialmente belo pela recepção da revelação, que corresponde à beleza da criação e a realça. Em virtude da graça, "o homem [...] reconhece em si o reflexo da luz divina: purificando o seu coração, o faz voltar a ser, como era no princípio, uma límpida imagem de Deus". [9] A beleza da criação torna o crente belo, não em um sentido puramente estético ou heróico, mas no sentido da plenitude da humanidade vivida com Cristo:

Não é o salto mortal do heroísmo que torna santo o homem, mas a humilde e paciente caminhada com Jesus, passo a passo. A santidade não consiste em aventureiros atos de virtude, mas em amar junto com ele. Por isso os verdadeiros santos são homens totalmente humanos e naturais, aqueles nos quais o humano, mediante a transformação pascal, vem à luz em toda a sua originária beleza. [10]

Essa capacidade humana de representar a beleza divina vê-se de modo particular na vida dos santos. Mas não significa que com isso seja limitada a alguns, já que todos são chamados à santidade. E a humanidade transfigurada é o meio pelo qual a Igreja faz conhecer ao homem a beleza da vida cristã, como dizia Bento XVI à Fraternidade de Comunione e Liberazione:

O Espírito Santo suscitou na Igreja, através dele [Mons. Luigi Giussani] um Movimento, o vosso, que testemunhasse a beleza de ser cristão numa época em que andava se difundindo a opinião de que o Cristianismo fosse algo penoso e opressivo de viver. Don Giussani se empenhou então a despertar nos jovens o amor a Cristo "Caminho, Verdade e Vida", repetindo que Ele é a única via para a realização dos desejos mais profundos do coração do homem, e que Cristo não nos salva a despeito da nossa humanidade, mas através dela. [11]

As obras belas inspiradas pela fé também dão testemunho da coerência da fé cristã e da sua capacidade de potencializar a humanidade:

Torna-se para mim inesquecível a experiência obtida no concerto de música de Bach executado diretamente por Leonard Bernstein em Munique de Baviera depois da morte precoce de Karl Richter. Eu estava sentado ao lado do bispo evangélico Hanselmann. Quando o último acorde de uma das grandes composições Thomas-Kantor-Kantaten encerrou triunfalmente, olhamo- nos um ao outro e não pudemos fazer outro comentário: "Ouvindo esta música se compreende como a fé é verdadeira". Estava presente naquelas harmonias uma força tão extraordinária de realidade, que já não mais por dedução racional, mas pelo estremecimento do coração se compreendia que tudo aquilo não podia ter se originado do nada, mas nascia da força da verdade que se atualizava na inspiração do compositor. Não acontece o mesmo quando nos comovemos admirando a trindade de Rublèv? [12]

Se a beleza da criação já nos leva a intuir um autor inteligente, é, sobretudo, a beleza produzida pela fé na vida e nas obras humanas dando testemunho da verdade e da fé. Eis a verdadeira apologética ratzingeriana:

Eu tenho expressado freqüentemente a minha convicção de que a verdadeira apologia do Cristianismo, ou melhor, a prova mais persuasiva da sua verdade, contra todas as negações são, de um lado os santos, de outro, a beleza que a fé foi capaz de gerar. A fim de que a fé hoje possa crescer, devemos facilitar a nós mesmos e às pessoas com as quais nos encontramos o contato com os santos, o contato com o belo. [13] Não foi, porventura, a beleza que a fé gerou na figura dos santos, impelindo tantos homens e mulheres a seguirem suas pegadas? [14]

A beleza é coerência em Deus. Dessa coerência provém a coerência da criação e a da revelação. O homem que reconhece na criação e na Redenção a coerência divina torna-se também ele belo pelo senso de harmonia com a verdade divina. Posteriormente as obras de tais homens serão belas e alegres. Essas coerências harmoniosamente ligadas e subordinadas são um testemunho da presença de Deus.

Seja a beleza, seja a verdade, são coerências. Nada de surpreendente, portanto, se a coerência da beleza leva a reconhecer uma verdade coerente. Se tivesse uma aproximação escolástica, Joseph Ratzinger provavelmente teria dito
(frase que não consegui encontrar nas suas obras): pulchrum et verum convertuntur.

Ambiguidade da "beleza cristã"

A beleza da ação divina e de seus efeitos atinge o crente. Mas não é qualquer beleza, e a primeira coisa que deve fazer-nos notar a ambigüidade de um simples esteticismo é que a morte de nosso Salvador não é esteticamente bela:

Todos os anos, na Liturgia das Horas do tempo de Quaresma, volta a atingir- me um paradoxo que se encontra nas vésperas da segunda-feira da segunda semana do Saltério. Aí, uma ao lado da outra, repetem-se duas antífonas - uma para o tempo de Quaresma, e a outra para a Semana Santa [...]. Na Quaresma o salmo tem como complemento a mesma antífona que vem sendo utilizada para todo o resto do ano litúrgico; trata-se do terceiro versículo que recita: "Sois o mais belo entre os filhos dos homens, - os teus lábios espalham a graça". A Igreja, obviamente, lê este salmo como expressão poética-profética da relação esponsal de Cristo com a Igreja. Reconhece Cristo como o mais belo entre os homens; a graça que se difunde por seus lábios significa a íntima beleza da sua palavra, significa a glória de seu anúncio. [...] Mas na segunda-feira da Semana Santa a Igreja troca a antífona, convidando-nos a ler o mesmo salmo à luz de Is 53, 2: "Não tem beleza nem aparência; - contemplamos uma fisionomia desfigurada pela dor". Como se conciliam as duas visões? O "mais belo" entre os filhos dos homens tem um aspecto tão miserável a um ponto que nem mesmo os seus querem vê-lo. [...] Choca-nos uma questão bem mais decisiva: ou seja, se a beleza é também verdadeira, ou não é antes a feiura quem nos conduz à verdade profunda do real. Quem crê em Deus, no Deus que mesmo com o semblante alterado do Crucifixo se manifestou como amor "até o fim" (Jo 13,1), sabe que a beleza é verdade e a verdade é beleza; mas no Cristo sofredor compreende também que a beleza da verdade inclui ofensa, dor e até o escuro mistério da morte. Beleza e verdade podem encontrar-se somente na aceitação da dor, e não na sua recusa. [15]

Quando Bento XVI retoma esse tema no seu encontro com os movimentos eclesiais, no dia 22 de maio de 2006, sintetiza o conteúdo essencial em poucas palavras:

Em Cristo a beleza da verdade e a beleza do amor se encontram; mas sabemos que o amor implica também a disponibilidade de sofrer, uma disponibilidade que pode chegar até a doação da vida por aqueles que se ama! (cf. Jo 15,13). [16]

Incluir o sofrimento na proximidade do belo é indispensável para que seja um belo respeitoso da vida humana neste mundo. De outro modo viria não somente a pergunta sobre a Paixão de Cristo, mas alguma pergunta também sobre a História:

Onde estava escondido Deus quando funcionavam os fornos cremadores? Uma similar contestação - pela qual davam-se motivos suficientes, bem antes de Auschwitz, para todas as atrocidades da História - significa, em todo caso, que um conceito absolutamente harmonioso do belo não é suficiente, não estando à altura de dirigir o confronto com a perversidade de pôr-se em discussão com Deus, com a Verdade, com a Beleza. [17]

A verdade é vida com Cristo, e este verdadeiro conhecimento comporta a experiência vivida com o Salvador crucificado, que não implica nenhum desprezo da racionalidade. Ratzinger segue a Nicolau Cabasilas:

Cabasilas [...] distingue dois tipos de conhecimento: aquele obtido por meio de instrução, que permanece, por assim dizer, como conhecimento ‘de segunda mão' e não implica um contato direto com a realidade; diferente, entretanto, é o conhecimento fornecido pela própria experiência, através do contato com as coisas. "Até que não tenhamos a experiência de um ser concreto, não amamos o objeto como deve ser amado". O verdadeiro conhecimento, portanto, está em ser golpeado e ferido pelo dardo da beleza, está em ser tocado pela realidade, "pela presença pessoal de Cristo", como escreve Cabasilas. O ser arrebatado pela beleza de Cristo possui um conhecimento mais real e profundo do que a pura dedução racional. Isso não deve levar a subestimar o significado da reflexão teológica, do pensamento exato e rigoroso, que permanecem inegáveis. Desdenhar ou repelir, a título de verdadeiro conhecimento, o estremecimento provocado pelo encontro do coração com a beleza, não pode senão empobrecer e tornar infecunda a fé e inclusive a teologia. É uma urgência premente de nosso tempo o saber valorizar esta forma de conhecimento. [18]

Com a sua insistência sobre a beleza como coerência, não se esperaria de Ratzinger um desprezo da coerência da teologia. Mas a coerência teológica inclui a cruz: uma teologia sem a cruz não seria cristã. Quem não aceita seguir a Cristo crucificado não pode ser um teólogo cristão. E o risco poderia ser também aquele de uma contemplação fechada às dificuldades da evangelização:

O bispo [Santo Agostinho] diz: a esposa, que não quer abrir, são os homens contemplativos, que buscam o recolhimento perfeito, fecham-se completamente ao mundo e desejam viver exclusivamente na beleza da verdade, da fé, abandonando o mundo a si próprio. Mas Cristo vem, faz ruído, desperta a alma, bate à porta e diz: ‘vives na contemplação, mas fechastes a porta contra mim. Tu procuras o bem-estar para alguns poucos, enquanto fora alastra-se a iniquidade, e o amor dos povos se esfria...'. Bate, portanto, o Senhor, para fazer cessar o repouso dos santos ociosos e grita: ‘Aperi mihi... aperi mihi et praedica me!'. A bem dizer, abrindo a porta, saindo para o trabalho apostólico, sujamos de modo inevitável os nossos pés. Mas os sujamos por Cristo enquanto fora esperam os muitos, que de nenhum outro modo poderíamos alcançar, senão passando pela imundície do mundo, onde estes se encontram. [19]

Diante do sofrimento, deseja-se um equilíbrio entre uma ignorância [de esteta] e um cinismo desesperado, entre uma contemplação divorciada dos problemas do mundo e um ativismo moralizante imanentista. O cristão é convidado à alegria da verdadeira visão do bem, tendo sempre em conta o mal:

Uma serenidade que tivesse como base fechar os olhos aos horrores da História seria finalmente uma mentira ou uma ficção, uma fuga. Mas, ao contrário: quem não consegue mais enxergar que também em um mundo perverso brilha ainda o Criador, não consegue mais viver, torna-se cínico ou simplesmente despede-se da vida. Por isto as duas coisas estão juntas: de uma parte o não desviar-se dos abismos da História e da existência humana, de outra a visão que nos dá a fé, a capacidade de ver que o bem existe, mesmo que nós não consigamos apanhar sempre o nexo entre estas duas realidades. Se deseja-se precisamente resistir ao mal, é deveras importante não cair em um moralismo sombrio, que não se alegra mais com nada, mas ver quanta beleza existe ainda, e partindo daí, opor resistência àquilo que destrói a alegria. [20]

A fé cristã é coerente e bela. Porém, tal beleza não é a de um esteticismo cego para os sofrimentos do mundo. A beleza cristã inclui o sofrimento do Salvador crucificado por amor, e por conseqüência, se abre também aos inumeráveis sofrimentos da história humana. A bela coerência da teologia permanece porque inclui a conversão ao Pai, com um Servidor sofredor. E tampouco a contemplação cristã é totalmente separada do mundo - nem sempre belo - no qual deve-se anunciar a salvação.

Se a beleza da fé pode ser mal compreendida, tal risco é ainda maior quando se trata da beleza em sentido geral.

As ilusões de beleza

A beleza pode convidar o homem a procurar a fonte transcendente da ordem do mundo. Mas pode também enclausurar o homem em si próprio ou no interior do mundo. O pecado consiste exatamente em confundir a criatura com o Criador, e em limitar o caminho a um destino mundano. No seu livro In cammino verso Gesù Cristo, Ratzinger indica como o caminho poderia limitar-se precisamente a um fim menos livre. A beleza do mundo pode tornar- se uma prisão:

A mentira conhece ainda outro estratagema: a beleza enganadora e falsa, aquela beleza que ilude e aprisiona os homens neles próprios, impedindoos de se abrir ao arroubo que os encaminha para o alto. Uma beleza que não desperta a saudade do indizível, da disponibilidade de oferta, do abandono de si: que, ao contrário, alimenta a ambição e o desejo de domínio, de posse e de prazer. É deste gênero de beleza que fala o Gênesis: Eva viu que o fruto da árvore era "bom para comer e atraente para os olhos..." (Gn 3, 6). A beleza, do modo como a mulher a experimenta, desperta nela o desejo de posse e a faz debruçar-se sobre si mesma. Quem não vê, por exemplo, a extrema habilidade com que a publicidade recorre às imagens com o intuito de despertar a cobiça, a busca da satisfação momentânea, em lugar da abertura a outra coisa fora de si? [21]

A beleza sem um compromisso com a verdade não serve:

Não há beleza que valha se não há uma verdade para reconhecer e seguir, se o amor decai a um sentimento passageiro, se a felicidade transforma-se em miragem inatingível, se a liberdade degenera em espontaneidade. [22]

As ilusões de uma beleza não aberta a Deus levam aqueles que a vivem conscientemente e lucidamente a um sentimento de absurdo. A beleza voltase contra aqueles que não querem andar por aí:

Parece-me mais real e sugestiva a via de A. Camus: o meu reino é deste mundo; a luz e o sol da sua terra africana dão forma a este mundo: atravessá-lo, abraçá-lo, dominá-lo deveria ser a suprema alegria. Mas já a obra juvenil L'envers et l'endroit, que é aproximadamente do mesmo período da entusiástica descrição do banho matutino de luz e de água do ensaio intitulado Les noces, descreve igualmente a experiência contrária: o poeta está em Praga, numa cidade em que ele não entende ninguém e cuja beleza se transforma para ele em uma prisão escura. A cidade da língua desconhecida,
do total isolamento e do non-sensum torna-se o símbolo da vida e do homem neste mundo: domiciliado em uma cidade da qual não conhece a língua, encerrado numa mortal solidão; por último a beleza da cidade transforma- se em irrisão e o prisioneiro precipita-se no abismo do absurdo. [23]

Há quem com Camus reconhece o absurdo e aceita viver por um pouco - até a morte - contentando-se com as belezas limitadas. Mas na nossa própria sociedade há também quem busque uma religiosidade sem as exigências da conversão. Aí reaparecem sempre as tentações gnósticas, nutridas pelas influências orientais. Ratzinger vê em tais correntes uma nostalgia da beleza, que no fim - como o senso do absurdo - cansa:

Deus pode ouvir e falar, ou seja: Deus é pessoa. Essa constatação está muito clara no âmago da tradição cristã, mas uma corrente importante na História das religiões se opõe a tal idéia e vem a ser sempre uma tentação a mais para o mundo ocidental: as religiões provenientes da tradição hindu e budista, e o fenômeno da gnose com a sua separação da criação e da Redenção. Hoje vemos um renascimento da gnose, que talvez seja o mais árduo desafio à espiritualidade e à pastoral da Igreja. A gnose permite conservar os termos e os gestos venerandos da religião, o perfume da religião, sem conservar a fé. E esta é a profunda tentação da gnose: está aí a nostalgia da beleza da religião, mas aí está também a fadiga do coração, que não tem mais a força da fé. [24]

Uma religiosidade não aberta à relação pessoal com o Autor da beleza não é suficiente para satisfazer o coração humano. Em qualquer caso, pode ser deveras uma fuga das exigências do diálogo - de obediência - com o Pai. Mas em tal situação, como dizia o Vaticano II a propósito do ateísmo, "também os crentes têm freqüentemente uma certa responsabilidade", porque entre as causas de uma escolha não cristã, " vai incluída também uma reação crítica contra as religiões e, em algumas regiões, mais propriamente contra a religião cristã". 25 Que muitos de nossos contemporâneos procurem a beleza fora do Cristianismo provêm também de um cansaço dos crentes diante de seu patrimônio. Mas o próprio fato de que alguns elementos da religiosidade sejam procurados fora da Igreja pode ajudar-nos a reencontrar nossa riqueza:

O fato de que as proposições de fé não sejam aceitas ou sejam ouvidas como um escândalo quando vêm da Igreja, enquanto recuperam repentinamente sua urgência quando não vêm dela, é por si mesmo um fenômeno preocupante. Isto mostra bem como na vida interna da Igreja está se vivendo um momento de cansaço que não permite mais fazer vir à luz a beleza e a necessidade humana da realidade da fé. Neste sentido, me parece, que mesmo o que vem de fora pode ajudar-nos a retomar consciência de nós mesmos e a nos reavivar. [26]

Para que a beleza não seja procurada fora da Igreja, os cristãos devem mostrar que aquilo que todos procuram se resume nisso: a alegria da festa. A festa como resposta à beleza pode ser verdadeira ou falsa. Tantas festas são tentativas de esquecer um vazio que na verdade não faz melhor que tornar-se mais evidente. Tais festas são aquelas que Ratzinger chama de "party" (recepção) organizadas como fugas do fato de que, precisamente, não existe motivo de alegria e sim o medo da interrogação subjacente, ou seja, a interrogação sobre a morte. A festa falsa não somente esconde essa interrogação, mas a substitui com uma pseudo-ressurreição, somente em nível horizontal:

Eu só posso representar a alegria quando o mundo e a humanidade possuam realmente motivo para alegrar-se. Mas eles o fazem verdadeiramente? Quando esta pergunta vem pondo em questão o "party" - a tentativa do mundo post-religioso de recuperar a festa - transforma-se rapidamente em um trágico disfarce. Por isso não é uma casualidade que o "party", sempre que as pessoas procuraram aí a ‘redenção', ou seja, a experiência da liberdade da auto-alienação, da coerção do quotidiano e a experiência de uma comunhão que ultrapassa o eu, excedeu subitamente os limites do passatempo burguês para degenerar em bacanais. A droga que não é tomada isoladamente, e sim celebrada em conjunto, deve efetuar a viagem para fora de si totalmente, viagem que só é experimentada com a fuga libertadora do quotidiano no mundo da liberdade e da beleza. No fundo existe a procura da excelência, a procura sobre as potências da dor e da morte, à qual nenhuma liberdade pode opor-se. Quem não se coloca essas perguntas se move em um mundo de ficção, cuja miséria artificial não pode ser superada nem mesmo pelas patéticas declamações sobre a dor dos povos oprimidos, declamações que não por um acaso fazem parte do núcleo comum de quase todas estas liturgias auto-inventadas. [...] Fazendo o caminho inverso: a festa pressupõe a autorização à alegria; esta autorização só é válida se está a altura de enfrentar à interrogação sobre a morte. [27]

A festa do cristão não é uma iniciativa de auto-liberdade; ela é uma resposta ao Salvador, tornada possível por Aquele que cria a coerência do universo e por isso pode ser a manifestação da Boa Nova (no forte sentido da palavra):

O que pode e deve fazer a Igreja a fim de que possamos realmente entender a alegria do evangelium? Não podemos agora tomar em consideração uma lista de cada uma das possibilidades pastorais: deve ser deixado um vasto espaço à imaginação não programada do cristão. Certamente, com tais limitações, renunciamos ao ponto mais importante sob muitos aspectos, posto que o humor dos cristãos, proveniente da segurança libertadora pelo fato de serem acolhidos, deveria ser a maneira pela qual a alegria do evangelho se irradia imperceptivelmente na existência humana, na dureza sem humor do mundo tecnicizado. Referimo-nos a isso que, por assim dizer, é ministerial, oficial, e relembremos algo mais: a Igreja dá ao homem a festa e a festa é algo diverso do tempo livre. O simples não trabalhar não constitui uma festa. E é um problema da sociedade atual o ter decerto chegado fundo no fastio do culto ao trabalho, e o não conseguir encontrar o outro, ou seja, a liberdade, a evasão da rotina, de modo que seu tempo livre vai sendo lentamente mais perigoso e ansioso pelo trabalho. Mas o que produz a festa? Propriamente isto: a festa não torna a se basear sobre uma escolha nossa, não é ainda algo de preparado por nós mesmos; é algo dado em precedência. A festa é uma manifestação do fato que em nosso tempo não nos desviamos só do modo de revolução dos astros, mas dos homens que viveram, amaram e sofreram antes de nós - que para isso o tempo do homem é um tempo humano. Mais radicalmente exprime o fato que nós recebemos o nosso tempo dAquele que governa tudo. [28]

A beleza atrai os homens. Mas qual beleza? O homem pode reter-se nas belezas reais criadas, talvez na consciência de não se abrir à Beleza transcendente. De tais belezas encerradas no mundo se extrai tristeza: Camus exprime claramente tais situações com seu senso de absurdo. As falsas festas são tentativas de disfarçar a interrogação sobre a morte ou a sua resposta - a ressurreição - substituída também essa, em um plano unicamente horizontal. A beleza pode também ser procurada em uma religião sem relação com um Deus pessoal, como se vê em diversas perspectivas de inspiração oriental, ou gnóstica, ou no New Age (espiritualidade à medida humana). Nem aí o homem encontra a verdadeira alegria que se espera da beleza. Mas tais buscas, em países de tradições cristãs, põem uma pergunta aos cristãos: por que as pessoas vão procurar em outro lugar? Às vezes os cristãos não sabem mais reconhecer a beleza da própria fé. Porém deveriam manifestar a beleza nas suas festas, que não são distrações, mas reconhecimentos alegres pelo dom recebido do Mestre do universo.

A importância da fé cristã aparece de modo particular - ainda que não de modo exclusivo - na importância dada pelo cardeal Ratzinger à liturgia.

A beleza da liturgia

O mundo necessita da beleza cristã, mas o teólogo Ratzinger está preocupado pela escassa resposta de muitas liturgias contemporâneas, na qual o discurso substitui a beleza do inefável:

Como seria um mundo do qual desaparecesse o dono da festa, não criada por ele, em favor de um tempo livre programado? Como seria um mundo no qual esgotasse a beleza causada pela fé? Mas falemos no presente: cada liturgia deveria ser um verdadeiro momento de festa, ter em si algo da livre e despreocupada gratuidade da festa real, uma libertação da constrição do ‘feito por nós' para entrar na resposta que já nos espera e que é suficiente nós escutarmos e aceitarmos. Sendo assim, se deveria dizer certamente: a Igreja deverá aprender novamente a celebrar as festas e a irradiar o esplendor. A sua submissão ao mundo racional nestes últimos anos foi muito profunda, debaixo deste ponto de vista, de tal maneira que a Igreja se despojou de algo que lhe era totalmente próprio. Ela deve nos conduzir às festas que conserva na sua fé, assim poderá em alguma medida deixar felizes aqueles para os quais o seu anúncio, se visto racionalmente, permanece inacessível.[29]

A celebração da liturgia deve demonstrar que ela antes de tudo não é obra humana, como bem o compreenderam os monges:

A liturgia não é feita pelos monges. Ela já existe antes deles. Ela consiste em entrar na liturgia celeste desde sempre em ação. A liturgia terrena é liturgia só pelo fato de se inserir naquilo que já existe, naquilo que é maior. [30]

Uma celebração digna ajuda a fé a reconhecer que a "liturgia é a mais alta expressão da beleza da glória de Deus, e constitui de alguma maneira um debruçar- se do Céu sobre a Terra". [31]

O "útil" pode vir a ser o inimigo do belo: "Tornou-se sempre mais perceptível o terrível empobrecimento que se manifesta onde se expulsa a beleza e se sujeita somente ao útil". [32] Uma liturgia vivida ao nível do uso, ou seja, do uso social, imita as pseudo festas, e como elas, leva só ao cansaço, ao tédio.

Nos anos transcorridos até agora [desde o Vaticano II] é inegável que se fez sempre mais tristemente perceptível o terrível empobrecimento que se manifesta onde na Igreja se põe para fora o belo ateleológico e em seu lugar se submete exclusivamente ao "uso". Mas os arrepios que produz a liturgia pós-conciliar, tornada opaca, ou simplesmente o fastio que ela provoca com o seu gosto pelo banal e com a sua mediocridade artística não esclarecem a questão; seja como for, essa evolução tem criado uma situação na qual se está sempre e novamente na necessidade de se pôr os problemas. [33]

Enquanto a "simplicidade" visa evitar um luxo excessivo para evidenciar a justa preocupação pelos pobres, são exatamente os pobres que querem ver manifestada, mesmo materialmente, a beleza divina:

As autoridades da igreja anglicana de Nova York tinham decidido suspender os trabalhos da nova catedral. Julgavam-na demasiado faustosa, quase um insulto ao povo, entre o qual tinham decidido distribuir a soma já destinada. Pois bem, os próprios pobres recusaram aquele dinheiro e impuseram a retomada dos trabalhos, não compreendendo essa estranha idéia de limitar o culto a Deus e de renunciar à solenidade e à beleza em proveito deles. [34]

Não desejando ficar somente nas recordações, Ratzinger propõe algumas considerações sobre o que a liturgia deve ser. Antes de tudo, simplicidade não é sinônimo de banalidade:

A liturgia existe para todos. Deve ser "católica", ou seja, comunicável a todos os crentes, sem distinção de lugar, de proveniência, de cultura. Deve ser portanto "simples". Mas simples não significa de baixo nível. Há a simplicidade do banal e a simplicidade que é a expressão da maturidade. [35]

Certamente não é fácil propor a todos o esplendor maduro da liturgia, por exemplo, porque nem toda igreja tem um coro de alta qualidade. Mas os limites de tantas igrejas não devem vir a ser a norma de todas as liturgias. A catedral pode propor uma liturgia mais desenvolvida. [36]

Ratzinger considera que o papel cada vez mais central da palavra na liturgia encobre a beleza e exprime uma antropologia redutiva. O homem não é só discurso, e só o discurso não basta para comunicar a obra divina (não por acaso o Vaticano II insistia no fato de que a revelação não se limitava a palavras). [37]

Que todos devam poder participar da liturgia não significa que tudo deva ser explicado, porque em tal caso tanto a participação quanto a compreensão ficam reduzidas:

Uma das palavras-chave da reforma litúrgica conciliar foi, com razão, a "participatio actuosa", a ativa participação na liturgia de todo o ‘povo de Deus'. Este conceito, todavia, tem passado depois do Concílio por uma fatal restrição.

Sobressai a impressão de que só há uma participação ativa onde existe uma atividade exterior verificável: discursos, cantos, prédicas, assistência litúrgica.

[...] Porém, também o silêncio é considerado como "participatio actuosa". Referindo-se a isto deve se perguntar: por que então deve ser somente o discorrer e não também o escutar, o perceber com os sentidos e com o espírito, uma co-participação espiritual ativa? Não existe nada de ativo em perceber, em captar, em comover-se? Não há nessa concepção mais bem um apoucamento do homem, que fica reduzido à pura expressão oral, se bem que hoje todos nós sabemos que quanto há em nós de racionalmente consciente e emerge à superfície é somente a extremidade de um iceberg em comparação com aquilo que o homem é no seu conjunto? [38]

Querer centrar a liturgia na explicação torna, na realidade, o mistério menos compreensível. Em uma bela liturgia, "ainda que os participantes não entendam talvez todas as palavras individualmente, percebem o significado profundo, a presença do mistério que transcende todas as palavras". [39]

Algumas reduções da liturgia se iniciam por volta do século XIII, com a redução da influência platônica na teologia. Em uma visão platônica cristianizada, a liturgia é centrada na relação com outro mundo, o mundo real, o mundo de Deus, e não por cima de tudo em nossa história:

Para Platão a categoria do belo era determinante: o belo e o bom para ele coincidiam por último em Deus. Com a aparição do belo nós ficamos profundamente feridos, e essa ferida nos arrebata fora de nós mesmos, põe em movimento o vôo da saudade e nos impele ao encontro daquilo que é o verdadeiro belo, o próprio bem. Na teologia dos ícones permaneceu vivo algo do fundamento platônico. [...] Este platonismo transformado e remodelado pela Encarnação desaparece no Ocidente a partir do século treze, a tal ponto que as artes figurativas tendem em primeiro lugar a representar fatos ocorridos, enquanto a história da salvação é vista menos como sacramento e mais como história desenrolada no tempo. [40]

Para quê ir à Igreja se é para ficar na mesma miséria? A liturgia deve, como a própria fé, fazer-nos entrar já na realidade daquilo que esperamos, na vida eterna já começada. A Igreja deve manifestar esse belo e não pode fazê-lo de modo banal:

A Igreja não pode contentar-se com o ordinário e o usual: deve reavivar a voz do cosmos, glorificando o Criador e revelando a magnificência do cosmos, torná-lo esplêndido e, portanto, belo, habitável, amável. A arte que a Igreja exprimiu é, junto com os santos que nela amadureceram, a única real "apologia" que ela pode exibir para a sua história. [...] A Igreja não deve satisfazer- se facilmente; deve ser uma chama do belo, conduzir a luta pela "espiritualização" sem a qual o mundo transforma-se "no primeiro círculo do inferno". [41]

Como podemos propor a fé como válida hoje se "as igrejas são como salões para concertos, onde só há espaço para as belezas do passado". [42] E novamente Ratzinger vê na busca dirigida a outras religiões um sinal de uma insuficiente manifestação da fé cristã:

A onda de esoterismo, a difusão das técnicas asiáticas de distensão e de auto-esvaziamento mostram que nas nossas liturgias falta algo. Justo no mundo de hoje temos necessidade do silêncio, do mistério para além do individual, da beleza. [43]

Sendo uma resposta à liturgia celeste, a liturgia celebrada neste mundo deve dar-nos a possibilidade de percebermos a irrupção da ação divina. Isto pressupõe a beleza, freqüentemente ameaçada hoje pela prevalência do discurso ou pela procura da utilidade. Uma liturgia bela é ao mesmo tempo mais divina e mais humana, e a própria beleza ajuda a entender aquilo que só a língua não é capaz de comunicar. Se a liturgia não sabe comunicar o senso do sacro, a Igreja dará a impressão de pertencer ao passado e quem deseja o sacro o buscará em outro lugar.

Na liturgia, mas não exclusivamente nela, dois "instrumentos" desempenham um papel particular: a música e as imagens.

A música e as imagens

A verdade e a beleza são coerência e nos convidam a dirigir nosso olhar para o autor do universo. A beleza da música não pode ser plenamente entendida senão dentro do quadro geral da coerência do criado:

A música produzida pelo homem deve ser uma escuta da música interior do universo e das suas leis, inserida no ‘canto fraterno' da ‘esfera fraterna'. A beleza da música funda-se na sua correspondência com as leis rítmicas e harmônicas do universo. A música humana é tanto mais bela, quanto mais se insere nas leis musicais do universo. [44]

Seguindo Santo Agostinho, Ratzinger mostra que o Cristianismo aprofunda em clave pessoal a compreensão da música do universo.

Já os pitagoristas não tinham concebido de maneira puramente abstrata a matemática do universo. No modo de pensar dos antigos, as ações inteligentes pressupunham uma inteligência que fosse sua causa. Os movimentos inteligentes - matemáticos - dos corpos celestes não eram, portanto, explicados de modo exclusivamente matemático, mas eram compreendidos só com base no pressuposto de que os astros fossem animados, portanto ‘inteligentes'. Para os cristãos resultou totalmente natural passar das divindades astrais aos coros angélicos, que estão ao redor de Deus e iluminam o universo. A percepção da música cósmica torna-se, assim, escuta do canto dos anjos. [...] Um passo posterior vem com a fé trinitária - a fé no Pai, no Logos e no Espírito. A matemática do universo não é por si mesma clara e nem sequer [...] explicável mediante as divindades astrais. Ela possui um fundamento mais profundo, o Espírito Criador; ela provém do Logos, no qual estão contidas as idéias originárias da ordem cósmica que Ele infunde na matéria
graças ao Espírito. A partir de sua função criativa o Logos foi definido Ars Dei - arte de Deus (Ars= Techne). O próprio Logos é o grande artista no qual todas as obras de arte - a beleza do universo - estão originariamente presentes. Participar no canto do universo significa pôr-se sobre as pegadas do Logos e segui-lo. [45]

A beleza da música manifesta a do universo e convida a pensar no autor da coerência universal. A fé nos indica que a bela liturgia humana responde ao canto angélico. O próprio fato de que a beleza da música possa ser percebida e compartilhada é um testemunho da ação criadora do Logos, cuja presença é celebrada pela própria liturgia.

Quanto ao que diz respeito às imagens, elas são diretamente ligadas a uma religião centrada na encarnação do Verbo divino:

A total ausência de imagens não é conciliável com a fé na Encarnação do Verbo. No seu agir histórico Deus entrou no nosso mundo sensível para torná-lo transparente a Ele. As imagens do Belo, nas quais fica visível o mistério de Deus invisível são parte integrante do culto cristão. Pode certamente haver altos e baixos no tempo, subidas e descidas, e, portanto, pode inclusive haver tempos de certa pobreza de imagens. Mas elas nunca podem desaparecer totalmente. A iconografia não é uma opção cristã. [46]

Se "a arte sacra acha seu conteúdo nas imagens da história da salvação", [47] não são somente recordações do passado, porque na liturgia o centro da história da salvação é realmente presente.

As imagens da história de Deus com os homens não mostram só uma seqüência de fatos passados, mas fazem ver neles a unidade interior da ação de Deus. As imagens remetem ao sacramento - sobretudo ao Batismo e à Eucaristia - e nele estão contidas, constituindo, deste modo, também um apelo ao presente. [...] Enquanto imagem centrada na Páscoa, a imagem de Cristo é sempre ícone da Eucaristia: esta remete à presença sacramental do mistério pascal. As imagens de Cristo e dos santos não são fotografias. A sua essência é a de conduzir para além daquilo que é puramente constatável no plano material e ensinar um novo modo de enxergar, que perceba o invisível dentro do visível. [48]

Desta necessária transparência das imagens no interior da liturgia, Ratzinger recolhe uma diferença entre a representação religiosa e a arte especificamente litúrgica. A imagem litúrgica é eclesial: como a Igreja, não é somente individual, e por meio dela se reconhece a imagem de Cristo:

Resta, porém, uma diferença entre a arte sacra (aquela que se refere à liturgia, que pertence ao âmbito eclesiástico) e a arte religiosa em geral. Na arte sacra não há espaço para a pura arbitrariedade. As formas artísticas que negam a presença do Logos na realidade e fixam a atenção do homem na aparência sensível, não são conciliáveis com o senso das imagens na Igreja. Do subjetivismo isolado não pode brotar nenhuma arte sacra. Ela supõe antes o modelo formado interiormente pela Igreja e aberto a nós. [...] Sem a fé não existe arte adequada à liturgia. A arte sacra está sob o imperativo da segunda carta aos Coríntios: olhando a Cristo, "somos transformados na mesma imagem, de glória em glória, pela ação do Espírito do Senhor" (3,18). [49]

A mesma importância tanto da música quanto das imagens na liturgia nos remete aos perigos nelas contidos. Para que a presença de Deus seja percebida, a música - como o conjunto da liturgia - não deve ser primordialmente obra humana. O homem não deve tomar o primeiro lugar:

Na igreja podemos ouvir Bach ou mesmo Mozart, em ambos os casos experimentamos de maneira surpreendente o que significa gloria Dei, a glória de Deus. Encontramo-nos diante do mistério da beleza infinita que nos faz experimentar de maneira mais veraz e mais viva do que aquela que poderia ocorrer por meio de muitas pregações. Porém, os perigos já se anunciam: a dimensão subjetiva e a sua paixão estão ainda contidas na ordenação do cosmos musical, no qual se reflete a própria ordem da criação divina. Mas já ameaça pôr-se em marcha o virtuosismo, a vaidade da própria habilidade, que não é posta mais ao serviço do todo, mas quer obter para ela mesma o primeiro lugar. [50]

Igual perigo surge com as imagens. O homem pode buscar nas imagens não o corresponder ao Autor da criação bela e coerente, mas pôr-se a si mesmo no primeiro lugar:

A Renascença deu certamente um ulterior passo adiante, numa direção totalmente nova. Ela ‘emancipa' o homem. Então nasce o estético no senso moderno - uma visão da beleza que não deseja mais andar além de si mesma, mas que, como beleza daquilo que aparece, se basta por último a si própria. O homem se experimenta em toda a sua grandeza, em sua autonomia. A arte fala desta grandeza do homem, e lhe é deveras admiradora; não tem mais necessidade de procurar outra beleza. [...] O conteúdo cristão ainda é representado, mas tal ‘arte religiosa' não é uma arte sacra no estrito
sentido. Ela não se insere na humildade do sacramento e no seu dinamismo que supera o tempo. Quer degustar o hoje e libertar-se a si própria através da beleza. [51]

A beleza implica uma coerência, que remete à Beleza do Criador, à coerência da obra do Logos presente também na liturgia. A percepção da coerência da música nos ajuda a entrar em relação com Deus para além dos discursos. Na música litúrgica unimo-nos aos coros angélicos para responder a Deus na Sua glória. Também as imagens, partes de um culto fundado no Verbo Encarnado, "imagem do Deus invisível, gerado antes de toda criatura" (Cl 1,15), nos unem à presença do Senhor. Tanto a música litúrgica quanto as imagens litúrgicas devem ser antes de tudo transparentes à obra e à ação de Deus, e não fechada sobre a criação ou à vaidosa expressão de capacidade humana.

Conclusão

A beleza é coerência da verdade, presente na criação, na revelação e na corrente coerente da tradição. Mas, sendo verdade, a beleza inclui também a dimensão da dor, parte da experiência humana assumida pelo Salvador crucificado. A experiência do crente unido pessoalmente a Cristo - não somente ao nível das idéias - não se limita a uma especulação teológica, mas não é de maneira nenhuma irracional. A experiência cristã é sumamente racional; bem distante de uma contemplação separada, pode entrar no mundo pouco brilhante porque não necessita ter medo.

Se, ao contrário, alguém se detém na beleza do mundo como um fim suficiente, permanece enganado e pode se envolver no desespero. Pode, inclusive, não tomar consciência do absurdo da própria posição, e se contentar com uma religiosidade parcial: uma dimensão espiritual sem diálogo pessoal com Deus... sem a obediência libertadora da fé. Que tal atitude seja freqüente até mesmo entre os cristãos põe a questão para os crentes se o seu testemunho está sendo suficiente, e, portanto, nos impele a testemunhar a veracidade da alegria cristã, através da nossa verdadeira festa fundada na verdade.

A festa mais profunda dos cristãos é a liturgia, que não é unicamente obra humana, porém resposta à exultação evangélica. Na liturgia o homem ultrapassa a pura beleza real do mundo, coisa que muito freqüentemente é ocultada por uma redução imanente no discurso racional e pela utilidade mundana imediata. Uma liturgia que vise exclusivamente ser "acessível" e "útil" não respeita nem a glória divina, nem a inteligência do homem, nem, enfim, o sofrimento humano que necessita de esperança.

O músico Ratzinger reconhece na música uma manifestação da beleza - portanto da coerência - do universo, sinal da ação criadora. Posto que o Criador se encarnou, resulta normal poder representar a história da salvação em imagens, cujo uso pode inclusive ser litúrgico, contanto que tal arte seja iluminada pela fé. O artista não deve se colocar em primeiro plano, mas ilustrar a ordem da criação divina, a coerência do universo criado.

A fé vivida na escuta do criador coerente do mundo libera o homem, graças a sua união com o criador. A alegre beleza da vida cristã e seus diversos belos frutos - comunhão, obras que já fazem passar a um mundo futuro - são o testemunho mais eficaz da verdade de Deus e da vida humana.


Notas:

1) O autor é Sacerdote dominicano, Decano de Filosofia e Professor na Pontificia Università san Tommaso d'Aquino, "Angelicum" - Roma. É também diretor da edição Francesa Nova et Vetera.
2) Cf. RATZINGER, Joseph. Introduzione allo spirito della liturgia, San Paolo, Cinisello Balsamo, 2001 (Der Geist der Liturgie: Eine Einfuhrung, 2000), p. 149.
3) RATZINGER, Joseph. Creazione e peccato, Catechesi sull'origine del mondo e sulla caduta, Edizioni Paoline, 1986 (Im Anfang schuf Gott, 1986), p. 24.
4) Idem. "Catechismo e reconciliazione", Relazione sul raporto fra ebrei e cristiani (Gerusalemme, 2 febraio 1994), Il Regno-Documenti 9\ 1994, p. 291. Cf. também Bento XVI, Visita pastoral a Loreto por ocasião do Agorà dos jovens italianos, Vigília de orações com os jovens, Piana di Montorso Sabato, 1 setembro 2007: "A beleza da criação é uma das fontes onde realmente podemos sentir a beleza de Deus, podemos ver que o Criador existe e é bom, que é verdadeiro o que a Sagrada Escritura diz na narração da história da Criação, ou seja, que Deus pensou e fez com seu coração, com sua vontade, com sua razão este mundo e viu que era bom".
5) Idem. Dio e il mondo, Essere cristiani nel nuovo millennio, In colloquio con Peter Seewald, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo, 2001 (Gott und die Welt, 2000), p. 208.
6) Idem. In cammino verso Gesù Cristo, San Paolo, Cinisello Balsamo, 2004 (Unterwegs zu Jesus Christus,
2003), p. 139.
7) Idem. Il sale della terra, Cristianesimo e Chiesa cattolica nella svolta del millennio: Um colloquio con Peter Seewald, San Paolo, Cinisello Balsamo, 1997 (Salz der Erde, 1996), p. 201.
8) Benedetto XVI, Udienza Generale, 29 ago. 2007. (Todos os textos do Papa Bento XVI são citados como se encontram no site do Vaticano ).
9) Idem. Udienza Generale, 29 ago. 2007.
10) RATZINGER, Joseph. Guardare Cristo, Esercizi di fede, speranza e carità, Jaca Book, Milano, 1989 (Auf Christus schauen, 1989), p. 82-83.
11) Benedetto XVI, Discurso aos participantes da peregrinação promovida pela Fraternidade de Comunione e Liberazione, Praça de São Pedro, 24 mar. 2007.
12) Idem. In cammino verso Gesù Cristo, p. 31.
13) Idem. Ibidem, p. 32.
14) Idem, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 22 mai. 2006.
15) RATZINGER, Joseph. In cammino verso Gesù Cristo, p. 27-28.
16) Benedetto XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 22 mai. 2006.
17) RATZINGER, Joseph. In cammino verso Gesù Cristo, p. 33.
18) Idem. Ibidem, p. 30.
19) Idem. Il cammino Pasquale. Cursos de exercícios espirituais pregados no Vaticano diante de S.S. João Paulo II, Editrice Àncora, Milano, 1985, p. 101.
20) Idem. Il sale della terra, p. 78.
21) Idem. In cammino verso Gesù Cristo, p. 34.
22) Benedetto XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 22 mai. 2006.
23) RATZINGER, Joseph. Elementi di teologia fondamentale, Saggi sulla fede e sul ministero, Morcelliana, Brescia, 1986 (Theologische prinzipienlehre, 1982), p. 71.
24) Idem. Il camino pasquale, p. 38.
25) Concílio Vaticano II, Constituição Gaudium et Spes, p. 19.
26) RATZINGER, Joseph. Il sale della terra, p. 142.
27) Idem. La festa della fede, Saggi di teologia liturgica, Jaca Book, Milano, 1990 (Das Fest des Glaubens, 1981), p. 61-62.
28) Idem. Elementi di teologia fondamentale, p. 76-77.
29) Idem, Ibidem, p. 76-78.
30) Idem. Cantate al Signore un canto nuovo, Saggi di cristologia e liturgia, Jaca Book, Milano, 2005 (coletânea de textos revistos pelo autor para a publicação em italiano, primeira edição em 1996, p. 156- 157.
31) Benedetto XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 22 mai. 2006.
32) Vittorio Messori em colóquio com Joseph Ratzinger, Raporto sulla fede, Edizione Paoline, Cinisello Balsamo, 1985, p. 132.
33) RATZINGER, Joseph. La festa della fede, p. 77-78.
34) Idem. Raporto sulla fede, p. 135.
35) Idem. La festa della fede, p. 97.
36) Cf. Idem, Ibidem, p. 98: "A catedral pode e deve representar a festividade e a beleza do culto divino de maneira mais imponente do que o possa fazer normalmente a igreja paroquial, e ainda que o compromisso com a arte tenha, devido aos casos e às circunstâncias, níveis diversos. Não significa que cada um deva ser tudo; somente todos juntos constituem o conjunto. O pluralismo pós-conciliar manifestou-se de modo estranho e uniformemente pelo menos em um ponto: ele não consente mais um nível de expressão definido".
37) Cf. Concílio Vaticano II, Constituição Dei Verbum, 2: "Esta economia da revelação vem com fatos e palavras intimamente conexos entre si".
38) RATZINGER, Joseph. La festa della fede, p. 98.
39) "La nuova evangelizzazione", L'Osservatore Romano, 11-12 dicembre 2000, 11.
40) RATZINGER, Joseph. Introduzione allo spirito della liturgia, San Paolo, Cinisello Balsamo, 2000 (Der geist der Liturgie: eine Einführung, 2000), p. 122.
41) Idem. La festa della fede, p. 99.
42) Idem. Dio e il mondo, p. 384.
43) "La Nuova Evangelizzazione", L'Osservatore Romano, 11-12 dicembre 2000, 11.
44) RATZINGER, Joseph. Introduzione allo spirito della liturgia, p.149.
45) Idem, ibidem. p. 149-150.
46) Idem, ibidem. p. 127-128.
47) Idem, ibidem. p. 128.
48) Idem, ibidem. p. 128-129.
49) Idem, ibidem. p. 130.
50) Idem, ibidem. p. 142-143.
51) Idem, ibidem. p. 124-125.




Editado 1 vezes. Última edição em 08/07/2010 16:25 por firefox.

Re: Deus é feio ou belo?
Escrito por: vitor* (IP registado)
Data: 16 de July de 2010 12:27

Tudo isto me lembra ao ler o que foi dito sobre o concerto de bach que existe beleza na verdade e verdade na beleza.
A tristeza de ver apoucar o estético numa cultura que por vezes tem aprovado o dualismo em que alma é que é divina e bela quando o que nos chega aos sentido naturais: visão, ouvido, paladar, etc etc, é fruto da fraqueza humana, é a mais pura das mentiras, porque tudo é criação divina, e potencialmente belo.

Re: Deus é feio ou belo?
Escrito por: vitor* (IP registado)
Data: 07 de August de 2010 19:46


Re: Deus é feio ou belo?
Escrito por: Desconhecido (IP registado)
Data: 15 de August de 2010 06:48

Citação:
vitor*
Tudo isto me lembra ao ler o que foi dito sobre o concerto de bach que existe beleza na verdade e verdade na beleza.
A tristeza de ver apoucar o estético numa cultura que por vezes tem aprovado o dualismo em que alma é que é divina e bela quando o que nos chega aos sentido naturais: visão, ouvido, paladar, etc etc, é fruto da fraqueza humana, é a mais pura das mentiras, porque tudo é criação divina, e potencialmente belo.

Em três linhas disseste uma grande verdade, na minha opinião.

Quantas vezes a beleza que nos chega aos sentidos, nos inspira a fazer grandes obras, pelos outros e por nós mesmos?

cumps



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