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Daniel 8,1-27; 2300 anos?
Escrito por: Rui Vieira (IP registado)
Data: 17 de May de 2010 13:30

"1.2 - Análise do texto

a) Pressupostos de hermenêutica

Quando se fala da Bíblia como Palavra de Deus, é frequente ver nela um tipo de escrito humanamente diferente dos restantes escritos antigos. E assim é. É diferente, porque é inspirado. Ao ser inspirado é, por conseguinte, isenta de erro formal. Mas de que erros será isenta? Será que todas a afirmações categoricamente contidas na Escritura estão isentas de erro? Afirmar isto é afirmar que a Escritura é mais divina que humana. Mas a Escritura é tão humana como divina. Esta realidade humana, profundamente humana da Escritura, tem constituido uma dificuldade de entendimento a muitos cristãos. Quando referi que é costume se encarar a Bíblia como um escrito diferente dos restantes escritos, fora o tema da inspiração, referia-me aos cristãos que olham o texto sagrado com a tendência a crer que, sendo Deus o ser absoluto, cada uma das suas palavras tem um valor absoluto, independente de todos os condicionamentos da linguagem humana. Não há motivos, segundo eles, para estudar estes condicionamentos para fazer distinções que relativizariam o alcance das palavras. Mas isto é iludir-se e recusar, na realidade, os mistérios da inspiração da Sagrada Escritura e da Encarnação do Verbo, Jesus Cristo, aderindo a uma falsa noção do absoluto. De facto, existe um elo interessante entre a Escritura e a Encarnação. Ensina o verdadeiro cristianismo (salvo a seita das Testemunhas de Jeová), que a Palavra substâncial de Deus (Jesus, o Verbo, o Logos), se fez semelhante aos homens em tudo, excepto no pecado. De igual modo, também a palavra de Deus escrita se assemelhou em tudo à linguagem humana, excepto no erro formal em matéria de Fé, em matéria de verdade religiosa. De facto, o Deus da Bíblia não é um Ser absoluto que, destruindo tudo aquilo que toca, suprimiria todas as diferenças e todas as nuances. Na Escritura, tal como na Encarnação do Verbo Eterno, longe de destruir as especificidades da escrita humana, Deus respeita-as e valoriza-as. Na Encarnação acontece precisamente o mesmo. Ao assumir a humanidade, Cristo permanece Deus, mas assume integralmente todas as caracteristicas desta humanidade, as suas finitudes, os seus condicionamentos históricos.

Ora, deste modo não é compreensivel nem aceitável a prática de uma hermenêutica bíblica que ignore ou dispense o tratamento histórico-crítico do texto. Se é verdade que a inspiração atinge todo o texto bíblico, em todos os seus géneros literários, não é menos verdade que em todo o texto temos todas as caracteristicas humanas próprias de um texto. Não há dúvida de que só se pode apreender o sentido de um texto, entendendo o género literário que nele predomina, os recursos literários e interpretativos que ele usa para fazer anunciar uma mensagem, o ambiente em que foi composto, os motivos, a situação do autor humano, e os leitores implícitos, ou seja, aqueles para quem o hagiógrafo primeiramente escreve. Deste modo, só haverá respeito para com a Bíblia, na sua totalidade e especificidade, quando se admitir como possível, e como necessária, a análise histórico-crítica do texto bíblico.

Deste modo, torna-se possível entender o sentido literal do texto inspirado, que não contém erros em matéria de Fé, mas que não está, por outro lado, isento de limitações e incorrecções em outras matérias, como opiniões científicas, indicações históricas e geográficas. A Escritura não é algo que se separe das caracteristicas humanas de outros escritos. Apenas se distingue pela sua inerrância formal em matéria religiosa. Já dizia um professor meu: “Quem não distingue, confunde; e distinguir não é separar!” De resto, a Escritura encarna profundamente no momento espacial e temporal em que surge. O entendimento do sentido literal é bem diferente da hermenêutica literalista, praticada pelo fundamentalismo bíblico.

A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por “interpretação literal” ela entende uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo todo o esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta o seu crescimento histórico e o seu desenvolvimento. Opõe-se assim à utilização do método histórico-crítico, como qualquer outro método científico, para a interpretação da Escritura. Se bem que o fundamentalismo tenha razão em insistir na inspiração divina da Bíblia, na inerrância da Palavra de Deus e nas demais verdades bíblicas, a sua maneira de apresentar essas verdades está enraizada numa ideologia que não é bíblica apesar do que dizem os seus representantes.

O problema de base dessa leitura fundamentalista é que, recusando levar em consideração o carácter histórico da revelação bíblica, torna-se incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo foge da estreita relação do divino e do humano no relacionamento com Deus. Ele recusa-se a admitir que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que foi redigida, sob inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram limitados. Por esta razão, ele tende a tratar o texto bíblico como se tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito Santo e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada numa linguagem e numa fraseologia condicionadas por uma ou outra época. Ele não tem em devida conta as formas literárias e as maneiras humanas de pensar, presentes nos textos bíblicos. O fundamentalismo insiste também de uma maneira indevida sobre a inerrância dos detalhes nos textos bíblicos, especialmente em matéria de factos históricos ou de pretensas verdades científicas. Muitas vezes torna histórico aquilo que não tinha a pretensão de historicidade, pois considera histórico tudo aquilo que é reportado ou contado com verbos num tempo passado, sem a necessária atenção à possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo.

b) A literatura de Daniel

O livro de Daniel aparece na bíblia hebraica entre os Escritos (Ketubîm), não constando na lista dos profetas (Nebi,îm). Embora com muitos pontos de convergência, o género de literatura presente em Daniel é substâncialmente diferente da presente nos profetas. As modernas traduções que seguem a grega Septuaginta (assunto a tratar mais adiante) já colocam Daniel entre os profetas e não nos escritos. Mas não há dúvida que a literatura presente em Daniel tem caracteristicas que o tornam uma excepção literária no Antigo Testamento.
De facto, entre os cap. 1 a 6 encontramos um género literário, chamado midrash haggádico (do hebraico narração, relato, conto), muito em voga no meio judaico a partir do séc. II a.C.. Este tipo de literatura serve-se de histórias, narrações, parábolas, histórias de martírio, exemplos de mestres, com características didácticas e educativas, de carácter não teorico, ou seja, distinto do midrash halákhico (interpretação feita em relação à halakhá, estudo do conjunto de preceitos e normas contidas na Torá). Quer dizer, pretende-se apresentar narrações com vista a transmitir um ensino, com base em histórias edificantes, com vista a conduzir à prática dos exemplos que nela são propostos. Por isso mesmo, os cap. 1 a 6 são uma sucessão de relatos que procuram avivar a fé dos leitores, trasmitir um ensino com base em exemplos de fé e virtude, de modo a encorajar os judeus a seguirem os exemplos apresentados nos relatos. O autor não tem em vista (conforme veremos) descrever factos históricos, mas apresentar histórias moralizadoras e edificantes, que podem ter um fundo ou um núcleo real histórico, mas de segunda importância. É um tipo de literatura que aparece em caso de dificuldades ou situações de perseguição, de modo a encorajar à fidelidade a Deus e à sua Lei contra os perigos e ameaças. Assim como Deus protegeu Daniel e os seus companheiros de todos os perigos e ameaças, assim também faria com os outros judeus fiéis à lei.

Para o nosso assunto é de maior interesse o género literário presente nos cap. 7 a 9 do livro de Daniel, que já é um género diferente da haggadá, se bem que com vista a procurar inculcar nos judeus a fidelidade a Deus e à sua Lei. Trata-se do género literário apocalíptico. Existem grandes equívocos relativamente ao termo apocalipse por parte de muitas pessoas, desejosas de revelações futuristas, de curiosidades mal explicadas, procedentes de um pseudo-cristianismo. Curiosidades que não pretendem, muitas vezes, ser utilizadas para glorificação de Deus, para para satisfação do ego. A literatura apocalíptica é explorada ao máximo por seitas e por Igrejas que pretendem fazer do fim dos tempos (e não dos tempos do fim...) um tema de atração, com anúncios de desgraças, e de castigos iminentes, de calamidades terríveis. Ora, isto procede justamente devido à ignorância da natureza da Escritura, e à ignorância do leigo comum face à mesma Escritura, aos seus métodos narrativos, aos seus símbolos e também graças à atitude de muitos pastores que querem fazer da literatura apocalíptica uma literatura do tipo “bola de cristal”, futurulogista em termos de acontecimentos narrados à distância do tempo, com precisão extrema. Parece que, como que por magia, assim que se ouve a palavra apocalipse, desperta logo na ideia catástrofes, castigos, fim do mundo. Até se sabe quantos são os eleitos marcados com o selo do Senhor (144000)!! Ora, esta exploração emotiva feita com a Palavra de Deus, é francamente deplorável. E não só deplorável pelos seus princípios, como infeliz nos seus resultados. Em última instância, as pessoas aderem a um grupo, igreja, ou seita, não por amor verdadeiro ao Senhor, mas marcados emotivamente pelo receio de castigos, entre outros fenómenos. Ora, louvar por amor é bem diferente do que louvar por medo! Mas acontece que a literatura apocalíptica não pretende causar medo. Bem pelo inverso; pretende causar ânimo, coragem e perseverança.

Ora, apocalipse provém do grego apocálypsis, que significa “revelação”, “acção de tirar o véu”, “desvelar”. A apocalíptica é uma corrente religiosa que se exprime na literatura denominada, precisamente, apocalíptica, cuja produção literária, de inspiração hebraica ou cristã se estende do séc. II a.C. até ao séc. II d.C.. Não há dados históricos que nos permitam identificar este tipo de produção literária antes do séc. II a.C., salvo raras excepções em poucos profetas, o que constitui desde já um elemento para podermos datar o livro de Daniel. Ao contrário da literatura profética, a apocalíptica não pretende a edificação e a conversão da realidade histórica presente, mas a revelação de acontecimentos que, tanto se podem referir ao passado, como eminentemente ao futuro. A literatura apocalíptica não trata somente de acontecimentos futuros, mas também procura esclarecer o sentido de acontecimentos do passado, e, eminentemente, esclarecer os acontecimentos do presente. Procura, nos seus mais variados símbolos, descortinar o sentido da história, e o designio salvador e libertador de Deus, Criador e Senhor. Em que termos o faz, e porque o faz?

As correntes apocalípticas sempre surgiram em tempos de perseguição, de grande tribulação e angústia. E o grupo a que pertecem os membros desta corrente religiosa era restrito. Na verdade, a corrente apocalíptica não era bem aceite na sociedade judaica, formando um grupo de iniciados com um mestre/profeta, devido a uma certa segregação por parte da sociedade. Fora este aspecto de constituirem uma minoria, e de serem, portanto, um grupo restrito de iniciados, surge em ambiente de perseguição. É por isso comum neste tipo de literatura que a sua mensagem esteja traduzida em códigos, quer através de simbologismo de pessoas, números, instituições como também através de métodos interpretativos da Escritura (por exemplo, o método interpretativo Pesher, que falaremos adiante). Era certamente uma forma de fazer passar a mensagem sem que ela fosse percebida pelas entidades que causavam a situação de opressão ou perseguição. E é bem compreensivel. Certamente que os autores apocalípticos sabiam que eram vigiados pelas estruturas do poder. É por esse motivo, muito frequente os autores recorrerem à pseudoepígrafia, isto é, atribuirem a uma figura célebre a autoría dos seus escritos. Também é muito frequente, tal como no Apocalipse de João, denominar a entidade perseguidora com o nome de outra entidade que nada tem a ver com o momento histórico concreto. Trata-se de escrita produzida com base a não ser identificável pelo poder opressivo. Outra característica da literatura apocalíptica é a visão péssimista que o escritor tem do mundo. Para o apocalíptico, o mundo está mergulhado na maldade, no pecado. Nada há de bom, nem de positivo no mundo e na sociedade humana. Tudo está corrompido, perdido. É um momento de combate entre Deus, e as forças que se opõem a Ele. Só Deus é que pode salvar os seus santos, os membros do seu Povo, injustamente perseguidos por esta situação catastrófica. O apocalíptico olha para o mundo e para a sociedade humana, contempla o cenário de desordem e de recusa de Deus e da sua Lei, e entende que o passo seguinte da história é a vinda triunfante e final do Reino de Deus. Para os judeus era a esperança do Messias. Para os cristãos, a esperança da Segunda Vinda, Gloriosa, do Senhor Jesus. A história humana, com os seus dramas, encontra desta forma, na literatura apocalíptica, o seu desenlace final, o seu “tirar o véu”, a sua revelação, o seu apocálypsis. Ganham sentido os dramas, os sofrimentos do Povo de Deus, como sendo um tempo breve de provação e sofrimento, até ao prémio final, junto de Deus, no seu Reino.


Naturalmente que tem que se ter em atenção a visão necessáriamente limitada do autor bíblico em relação ao universo humano. Para o judeu daquela época, o mundo conhecido era o da zona do crescente fértil, o médio oriente, e o Mediterrâneo. Tudo o mais, em termos humanos, físicos e geográficos, era desconhecido. É por isso compreensivel que, a certos acontecimentos dramáticos, humana e fisicamente circunscritos, o autor bíblico dê a qualidade de situações universais.

c) Autoria e data de composição do livro

Desde a antiguidade que se pensou que o autor deste livro era um certo Daniel mencionado em Ez 14,14.20, Esd 8,2 e Ne 10,7. Sendo Ezequiel um profeta no exílio da Babilónia, facilmente se concluiu que este Daniel era o autor do livro com o seu nome, no qual também há sempre referências a Nabucodonosor, rei da Babilónia, e no qual Daniel se afirma como estando entre os exilados. Mas Ez 14,14.20 não menciona este Daniel como estando na Babilónia, e fora estes dois versículos, não há mais nenhuma referência a Daniel no resto do livro de Ezequiel. E no contexto de Ez 14,12-23, Daniel aparece, juntamente com Noé e Job como justos que, graças à sua justiça, não sofrem o castigo pelo pecado do seu país. Trata-se do tema da intercessão dos justos pelos pecadores, cuja profecia é colocada no ano 591 a.C., ainda no reinado de Sedecias, antes da destruição e deportação definitivas (Ez 8,1). Daniel aparece como uma figura de exemplo moral, mas nunca como estando no exílio, nem como sendo escritor. Nem o texto sugere Daniel como estando vivo, tal como não supõe vivos Noé e Job. Daniel aparece neste cap. 14 de Ezequiel, e desaparece de todos os restantes profetas. Os textos de Esd 8,2 e Ne 10,7 também não nos ajudam em nada. Colocam o nome de Daniel inseridos em geneologias (Esdras) e em listas de sacerdotes (Neemias).Sem dúvida, Daniel, enquanto profeta, é desconhecido na Bíblia. Este Daniel referido por Ezequiel deve referir-se a qualquer heroi oriental, célebre pela sua sabedoria e pela sua justiça, conforme nos é testemunhado pelos textos descobertos na antiga cidade-estado Ugarit, desenterrados entre 1928 e 1939.

As dificuldades de aceitação de Daniel como sendo escrito durante o exílio começam nas linguas em que se encontram os originais, os códices mais antigos. De facto, o texto de Dn 1,1-2,41 e Dn 8-12 está escrito em hebraico; Dn 2,4b-7,28 aparece-nos em aramaico. Os textos gregos não nos interessam. Ora, o aramaico só entrou na fala e na escrita dos judeus no periodo pós-exílico. Até ao exílio, e durante este, o hebraico continuou a ser a lingua predominantemente falada e usada na escrita dos livros sagrados. Não se entende, portanto, como Daniel escreve em aramaico a longa secção didáctica, haggádica, de 2,4b-7,28. Isto só se entende razoavelmente considerando o texto como sendo produzido no periodo do pós-exílio.

Por outro lado, os profetas posteriores ao exílio, Malaquias, Jonas e Joel, não nos falam nem mencionam uma única vez este Daniel, nem como personagem, e muito menos como profeta. É frequênte, nos livros proféticos, ocorrer a menção de outros escritos proféticos ou, pelo menos, sofrerem no seu texto a influência de ideias extraídas de outros livros proféticos, quer pela linguagem usada, quer pela retoma de temas frequêntes. Sobre Daniel, estes profetas do periodo pós-exílico nada nos falam, nem de Daniel, nem dos temas ou histórias que ele descreve no seu livro (ver p. 12 – hagadá). A literatura de Daniel é totalmente desconhecida para estes profetas do pós-exílio.

Por outro lado, as referências históricas contidas no livro de Daniel não ajudam muito. Com efeito, Daniel descuida várias vezes a fidelidade histórica. Em Dn 1,1, apresenta-se Nabucodonosor a cercar Jerusalém no terceiro ano de Joaquim. Ora, no terceiro ano de Joaquim, Nabucodonosor ainda não era rei. Será rei só no quarto ano de Joaquim, e cercará Jerusalém pelo 11º ano de reinado deste rei, em 597 a.C., por ocasião da primeira deportação (II Rs 24,1-2; II Cr 36,6). Em Dn 2,1 Nabucodonosor aparece no segundo ano do seu reinado. Ora, já deveria ir no sétimo de reinado, porque é no sétimo ano que este rei faz a primeira deportação de exilados. Em Dn 5,1-2, diz-se que Baltasar é filho de Nabucodonosor. Ora, Baltasar poderia ser descendente de Nabucodonosor, mas não seu filho. Com efeito, Baltasar era filho de Nabónido. Em Dn 6,29, o reinado de Ciro é colocado como sucedendo ao de Dário. Também é incorrecto, porque Dário reina sucedendo a Cambises em 522 a.C., enquanto que Ciro morre em 529 a.C. Em Dn 6,1;9,1;11,1 aparece Dário como sendo filho de Xerxes, da descendência dos Medos. A história não conhece nenhum rei desta dinastia com o nome de Dário. Em relação a ser filho de Xerxes (outra tradução possivel: Assuero), também é incorrecto, porque Dário é pai de Xerxes, e não seu filho. Há um Dário II, filho de Artaxerxes I, mas não nos interessa, por ser já muito distante de Ciro (reina em 424 a.C.), o que não singifica que não haja, por parte do autor de Daniel, uma confusão entre os dois reis com este nome de Dário. Ainda em relação a Dário, alguns partidários da exactidão histórica do texto querem dar a ideia de que este Dário seria um general Medo, que terá conquistado a Babilónia, e se tornado um co-regente de Ciro no governo desta provincia. Não há nada que nos confirme esta ideia. É totalmente desconhecida da história qualquer Dário da altura do rei Ciro.
Já nos devemos ter apercebido, pelo menos intuitamente, que a cronologia não segue um padrão exacto. Se o texto de Daniel se apresenta como uma unidade organizada, em termos de assuntos e temas, tal não acontece com a cronologia. Inicia em Dn 1,1 em 597 a.C.. Em Dn 5,30 narra-se a morte de Baltasar, ocorrida em 539 a.C.. Em Dn 7,1, coloca-se a sua primeira visão no primeiro ano de regência de Baltasar (543 a.C?). Em Dn 8,1, a segunda visão no terceiro ano de Baltasar (540 a.C.?). Em Dn 9,1 coloca-se a interpretação das 70 semanas no primeiro ano de Dário (522 a.C.). Em Dn 10,1 coloca-se a visão final da vitória de Miguel para o povo judeu no terceiro ano de Ciro (556 a.C.). Conclusão? Não podemos considerar como de interesse as indicações históricas dadas pelo livro, pois as mesmas não obedecem a qualquer rigor. Ja vimos, por exemplo, que a ordem das visões, a seguir pela cronologia, não seria a que se apresenta no livro (1ª em 543 a.C.; 2ª em em 540 a.C.; interpretação das 70 semanas em 522 a.C.; e a visão final em 556 a.C.). Desta sorte, a visão final seria cronologicamente a primeira, e isto não faz sentido. Portanto, o livro de Daniel não nos pretende falar de história, nem de datas. O interesse é teológico, não histórico. A história, e as indicações históricas que apresenta servem apenas como palco onde se desenrola o drama da fé, e onde acontece a Revelação, o comunicar de Deus, trasmitindo uma mensagem de carácter religioso, usando a figura de reis e sua cronologia sem se obedecer a exactidão cronológica, nem lógica. Somos forçados a admitir que o autor de Daniel se serve da figura destes reis como símbolo, o que é muito próprio do midrash haggádico em tempos de perseguição, e mais ainda da literatura apocalíptica (ver p. 13-14). Realmente, não faz sentido nenhum, se Daniel fizesse relatos de viva experiência, cometer tantas “gaffes” históricas. Isto só se admite entendendo que o autor fala destes reis através das memórias populares,e vagas concepções acerca destas figuras históricas.

Segundo a cronologia do livro, a actividade de Daniel decorre entre o ano 597 a.C (Dn 1,1) e o ano 522 a.C. (Dn 9,1). Portanto, presume-se que Daniel assistiu ao édito de Ciro em 538 a.C.. Não é estranho que Daniel não faça qualquer referência directa a este acontecimento, na linha de Isaías (ver pp. 2-6)? A única situação relativa à conquista da Babilónia por Ciro, relatada em Daniel, e do modo indirecto, é a morte de Baltasar (Dn 5,30). Já vimos que não faz sentido estabelecer ligação entre as 70 semanas e Artaxerxes I. Não há dúvida que estamos perante histórias moralizantes, destinadas a transmitir uma mensagem de carácter prático, não teórico, usando figuras históricas como ambiente de colocação. Se não fosse o caso, esta saída dos hebreus de regresso a Jerusalém teria que ser mencionada. Conclusão? Daniel não está preocupado em falar dos reis babilónicos e persas, nem em relatar ao acaso as desventuras e fidelidades de Daniel, nem está preocupado em falar do édito de Ciro, justamente porque esse édito, dadas as circunstâncias em que escreve, não tem interesse, conforme veremos.

Em termos de temas teológicos, temos outra dificuldade. A idéia de ressureição dos mortos, presente em Dn 12 só surge no mundo e no pensamento judaico a partir do séc. II a.C., precisamente por influência grega. Antes deste periodo, nunca é referido, pelo menos de forma directa, clara, positiva, a ideia de ressurreição futura. Até ao periodo grego, a ideia teológica é a das bençãos de Deus que se recebem em vida, para no fim desta se juntarem aos antepassados. Portanto, a teologia da ressurreição dos mortos só surge a partir do séc. II a.C.. Sintoma claro desta realidade é o facto de, por ser uma ideia ainda recente na teologia judaica, ser aceite por fariseus e recusada por saduceus, no tempo de Jesus. Por isso, não se entende muito bem como é que Daniel, durante o exílio, já falava acerca deste tema. Esta ideia ganha ainda mais força, se considerarmos que os profetas posteriores ao exílio (Malaquias, Jonas e Joel) não nos falam da ressurreição futura. E é normal que não falem, porque esta teologia só aparece no séc. II a.C., sendo precisamente Daniel o último livro da Bíblia hebraica a ser escrito (aqui não se incluem os livros deuterocanónicos, da Bíblia grega).
Finalmente, uma última observação. Em Dn 9,12.16.19, em 522 a.C. (Dn 9,1), aparecem referências a calamidades que assolam Jerusalém, estando esta cercada (v.16), e pedindo Daniel nesta oração que Deus actue contra o causador desta situação. É estranho colocar esta oração de pedido de ajuda numa altura em que os judeus eram protegidos pelo império persa, e este se encontrava bastante estável. Jerusalém não esteve cercada em circunstância alguma durante a fase média do império persa, nem foi assolada por qualquer calamidade durante a ocupação persa. Foi, aliás, uma ocupação tranquila, de colaboração, conforme já se viu (ver pp. 3-6, relações tranquilas entre os reis persas e os judeus). Depois do periodo de estabilidade durante o império persa, Jerusalém só voltará a ser fustigada por calamidades, perseguições e guerra devido às invasões gregas, no séc II a. C., e de uma forma muito particular e sangrenta durante o reinado de Antíoco IV Epifânio.

Já vimos que o livro apresenta textos escritos em aramaico, uma lingua usada apenas a partir do regresso do exílio. Já vimos que o midrash haggádico também é um tipo de literatura que aparece a partir desta altura, bem como a literatura apocalíptica. Já vimos que os dados históricos são muito incorrectos, e que só se explicam pelo distanciamento no tempo. Já vimos que a teologia da ressurreição dos mortos só aparece no séc. II a.C., e que é totalmente desconhecida dos profetas do periodo do pós-exílio. E também vimos, em relação ao conteúdo de Dn 9,4-19, que Jerusalém só voltou a ser saqueada, e os judeus perseguidos, por ocasião do reinado de Antíoco IV Epifânio, rei grego, não fazendo sentido colocar aquela prece na boca de Daniel durante o reinado de Dário, no qual não houve guerra nem perseguição contra os judeus. Por tudo isto, somos forçados a admitir que o livro de Daniel só foi redigido no séc. II a.C., durante a perseguição desencadeada por Antíoco IV."


(Rui Silva, em Contra a teologia adventista de sétimo dia)

Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te, ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocará antes de te conhecer? Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo de invocar outrem. Porque, porventura, deves antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas como invocarão aquele em que não crêem? Ou como haverão de crer que alguém lhos pregue? Com certeza, louvarão ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam o encontram e os que o encontram hão de louvá-lo (S. Agostinho, Confissões)

Re: Daniel 8,1-27; 2300 anos?
Escrito por: Rui Vieira (IP registado)
Data: 17 de May de 2010 13:32

2 – Os 2300 anos

2.1 – Insuficiência e erro

Dizem os teólogos ASD que o periodo de 2300 tardes e manhãs diz respeito ao periodo de 2300 anos decorridos entre 457 a.C. e 1844 d.C., ano em que Cristo entra no Santo dos Santos do santuário celestial para o dia da Expiação definitiva, para iniciar o juízo investigativo. Com base no que já foi dito até aqui, vimos que Dn 9,25-27 não nos fornece o periodo dos 490 anos com qualquer começo em 457 a.C.. Também vimos que esta resposta do anjo diz respeito ao pedido de esclarecimento que Daniel faz a respeito das setenta semanas de Jeremias, e não em relação à profecia de Dn 8,1-14, cuja explicação é dada em Dn 8,15-27. Já se falou que cada uma das visões é procedida da sua explicação, e querer misturar visões com visões é puro malabarismo textual, é arrancar e descontextualizar a narrativa e método próprios do texto bíblico.

Ora, segundo os ASD, as 2300 tardes e manhãs significam os 2300 anos em que o santuário é abandonado, e os fiéis calcados aos pés (8,13) pela acção do chifre pequeno. E, segundo eles, este chifre pequeno de Dn 8 é o mesmo que aparece em Dn 7, e entendem como sendo a Roma Imperial, que se converte, após a divisão do império (Dn 8,8), em Roma papal. O pioneiro e teólogo adventista J. N. Andrews escreve: “Em consequência, as actividades atribuídas a este «chifre pequeno» de Daniel 8,10-13, 23-25; 11,31 e 12,11 entendem-se como que abrangendo Roma tanto pagã como papal em suas esferas de acção.” (The Prophecy of Daniel, The Four Kingdoms, The Sanctuary, and the 2300 Days, pp. 69-70). O guru adventista de profecia Urias Smith assegura que não tem nenhuma outra explicação possível: “Roma satisfaz todas as especificações da profecia. Nenhuma outra potência o faz. Por isso, somente Roma é a potência em questão.” (Daniel and the Revelation, p. 162)

Mas uma análise atenta levanta sérias dificuldades a esta interpretação. Comecemos por ver que é impossivel relacionar o chifre de Dn 8 com o império romano. Daniel 8,9 diz que o chifre pequeno teria sua origem nas divisões do império de Alexandre, “no fim do seu reinado” (v. 23). Isto aponta-nos para um poder que se originou no mundo grego nalgum momento depois do ano 300 a.C.. Roma nunca foi parte do império de Alexandre, nem se originou de uma das divisões do império grego. Roma surgiu na Itália e foi fundada no ano de 750 a.C. Roma converteu-se em República no ano 509 a.C. e não conquistou as quatro divisões do império grego. Isto é prova adicional de que Roma não surgiu de nenhuma das quatro divisões do império de Alexandre. Portanto, Roma não se encaixa no símbolo profético de um chifre que surge de um chifre dentro do império grego. Segundo os adventistas, os 2300 anos começaram no ano 457 a.C. e terminaram no ano 1844 d.C.. Supõe-se que, durante esse período de tempo, o chifre pequeno de Dn 8 “pisou aos pés” o santuário. De acordo com os ensinamentos adventistas, isto começou quando Roma pisoteou o santuário terrestre e logo se converteu em Roma papal que pisoteava o santuário celestial. Isto apresenta vários dilemas:

1. Roma não teve nenhum contato com os judeus senão no ano 161 a.C. Como poderia o chifre pequeno haver começado sua obra no ano 457 a.C., 296 anos antes de entrar em contacto com os judeus?

2. Roma não importunou os judeus senão depois que a Palestina se converteu em parte do Império Romano no ano 63 a.C.. Como pode o chifre pequeno “pisotear” o santuário durante quase 400 anos sem haver molestado jamais o serviço do santuário?

3. Se Roma papal é o chifre pequeno de Dn 8 durante a última parte dos 2300 anos, que ocorreu com a Roma papal em 22 de outubro de 1844? Por que não há nenhum acontecimento na história papal que coincida com o final dos 2300 anos?

4. Se Roma papal não perseguiu os judeus nem deteve os sacrifícios no ano 457 a.C., e se não há nenhum acontecimento na história papal que coincida com a terminação dos 2300 dias em 1844, como podemos então, vincular Roma a esta profecia?

Dn 8 não diz que os quatro chifres foram absorvidos pelo chifre pequeno, como as quatro divisões do império de Alexandre foram absorvidas por Roma. A aplicação a Roma converte a profecia em algo bastante diferente do que indicam os símbolos de Daniel.

Quem lê o capítulo inteiro não pode deixar de ver que um acontecimento se segue ao outro.

1 - O surgimento do “chifre grande” (Alexandre) ocorre primeiro (Dn 8,5);
2 - Governa por um tempo e é “destruído”;
3 – O Seu império divide-se em quatro novos impérios (Dn 8,8.21-22);
4 - O “chifre pequeno” aparece em cena DEPOIS dessa divisão (Dn 8,9.23).

Um acontecimento depende do outro e podemos seguir o curso deles através da história. Agora, consideremos cuidadosamente a seguinte cronologia:

1 - Alexandre morreu no ano 323 a.C.
2 - O império de Alexandre dividiu-se no ano 301 a.C.
3 - O chifre pequeno não poderia ter aparecido no cenário DEPOIS desta divisão!

Como poderia o chifre pequeno estar ativo no ano 457 a.C. quando a profecia não mostra que surgiria senão depois do ano 301 a.C.?

Outro aspecto a ter em atenção, é que o chifre de Dn 8 é um rei e não um império: “Mas, no fim do seu reinado (das quatro divisões do império grego), quando os prevaricadores acabarem, levantar-se-á um rei de feroz catadura e entendido de intrigas” (8,23). Não pode haver nenhuma dúvida de que aqui Gabriel identifica o “chifre pequeno” do versículo 9 como “um rei de feroz catadura”. A palavra hebraica para “rei” no versículo 23 é melek, e significa “um rei, rei real” (Strong). A palavra melek não se traduz nunca como “reino, ou poder mundial, ou império”. Gabriel usa a mesma palavra hebraica melek para identificar o chifre grande do bode no versículo 21, o qual todos os eruditos bíblicos concordam que se refere a Alexandre. No versículo 23 (vê-se mais acima), a palavra “reinado” vem da palavra hebraica malkuth, que significa “um domínio, império, reino, reinado, reino, real” (Strong). Portanto, Gabriel fez uma óbvia distinção ao usar estas duas palavras. Eis aqui o que Gabriel disse: “De um malkuth (domínio, reinado, império, reino) se levantará um melek (governante, rei)”. Procedendo desde o versículo 23, faz-se referência ao rei numa forma pessoal. As palavras “seu” e “ele” parecem 10 vezes nos versículos subsequentes, 24 e 25. Isto denota que se refere a um indivíduo, não a um poder mundial.

2.2 – Análise do texto

Se o chifre pequeno não é Roma, então quem é? Há uma opinião quase unânime entre os eruditos bíblicos de todas as denominações, judeus e cristãos, e até alguns destacados eruditos adventistas, de que o chifre pequeno é Antíoco Epifânio. Ao examinar as evidências que seguem, parecerá abundantemente claro que Antíoco Epifânio cumpre com exatidão todas as especificações de Daniel 8. Não se pode dizer o mesmo de Roma. O fato de o chifre pequeno ter começado a sua obra muito antes que Roma tivesse algum contato com os judeus, e de que o chifre pequeno tenha surgido de uma das divisões do império grego, parece eliminar Roma, pois ela não se ajusta nem ao lugar, nem ao tempo. Ademais, o chifre pequeno é descrito como um rei específico, não como um império. Portanto, como Roma não cumpre estes requisitos fundamentais da profecia, examinemos Antíoco Epifânio, para perceber se ele cumpre as especificações desta profecia. Examinaremos o capítulo, versículo por versículo.

“De um dos chifres saiu um chifre pequeno, e se tornou muito forte para o sul, para o oriente e para a terra gloriosa” (8,9).

Segundo Dan. 8:9, o chifre ataca primeiro ao sul, logo ao leste, e em seu caminho ao leste ataca a terra gloriosa.

O reino de Antíoco Epifânio centrava-se na Síria, que estava situada ao norte de Israel. Note-se que, durante a sua carreira, Antíoco atacou somente em direção ao sul e a leste da Síria:

Ao sul – “Antíoco entrou no Egipto, e combateu (o seu rei) Ptolomeu Filometor, tomou muitas cidades, e ficou em Alexandria; e com toda probabilidade haveria submetido o país inteiro, se os romanos não o houvessem detido enviando-lhe seu embaixador Popílio, que o obrigou a desistir e afastar-se”. (Gill’s Exposition). As campanhas militares de Antíoco contra o Egipto são descritas no deuterocanónico I Macabeus 1,19-20: “Desta maneira, ocuparam as cidades fortes na terra do Egipto, e ele tomou seus despojos, e depois que Antíoco havia atacado o Egipto, regressou novamente no ano cento e quarenta e três e subiu contra Israel e Jerusalém com uma grande multidão”.

Ao Leste – Em direção à Armênia e Pérsia, os atrópatas na Média, e os países mais além do Eufrates, aos quais fez pagarem-lhe tributo: “Porque estando muito perplexo, decidiu entrar na Pérsia para receber os tributos dos países, e reunir muito dinheiro” (I Macabeus 3,31). Mais adiante diz: “Por esse tempo, viajando Antíoco por altas regiões, ouviu dizer que Elimas, no país da Pérsia era uma cidade de grande renome por suas riquezas, sua prata, e seu ouro; e que havia nela um templo muito suntuoso, no qual havia coberturas de ouro e peitorais, e escudos, que havia deixado ali Alexandre, filho de Filipe, o rei da Macedônia, que reinou primeiro entre os gregos” (I Macabeus 6,1-2).

A Terra Gloriosa – Antíoco atacou inesperadamente a terra de Israel, matando dezenas de milhões de judeus, na tentativa de esmagar a religião judaica.

O campo de operações de Antíoco estava precisamente nas três áreas que Daniel menciona. Isto não ocorre com Roma. Muitas das maiores conquistas de Roma foram ao norte e ao oeste dela. Roma conquistou grandes regiões do noroeste da Europa, as áreas que agora são ocupadas pela Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Espanha e Portugal. Os romanos conquistaram as regiões noroeste da África, que agora estão ocupadas por Marrocos, Argélia e Tunísia. Roma foi claramente um poder que cresceu muito em direção ao norte e em direção ao oeste. Portanto, Roma não pode ajustar-se às especificações desta profecia.

No seu livro 1844 Made Simple (1844 Simplificado), o escritor adventista Clifford Goldstein argumenta que, em comparação com a Pérsia e Grécia, Antíoco não “se engrandeceu sobremaneira”, e que, portanto, não pode ter sido o chifre pequeno de Daniel 8,9. Uma leitura cuidadosa de Daniel 8,9 revela que a profecia nunca o compara com outros poderes, mas somente diz que “se engrandeceu muito” nas três direções: em direção ao sul, em direção ao leste, e em direção à terra gloriosa. Antíoco não foi um chifre grande em um cenário grande. Foi um chifre pequeno que desempenhou um grande papel num cenário pequeno. A sua conquista do Egipto e o seu ataque contra o judaísmo podem certamente ser descritos como “extremamente grande” no cenário da história do Oriente Médio durante este período. Pode-se argumentar que, de todos os inimigos do judaísmo, Antíoco Epifânio foi o que esteve mais perto de extirpar a religião. O seu ataque contra o judaísmo somente pode ser descrito como “extremamente grande”.

Examinemos agora o versículo seguinte de Daniel 8: “Cresceu até atingir o exército dos céus; a alguns do exército e das estrelas lançou por terra e os pisou” (8,10). Este versículo não nos fala de seres celestiais, porque nenhum império, nem sequer Roma, lançou por terra seres celestiais. Tanto a Bíblia como os apócrifos judeus usam uma linguagem similar para descrever os sacerdotes e governantes do povo hebreu. Eis aqui alguns exemplos: Os filhos de Jacob são descritos no sonho de José como estrelas. (Gênesis 37,9); Em Is 24,21, os governantes judeus são chamados “no céu, as hostes celestes...”; Em II Macabeus 9,10, descreve-se Antíoco como “o homem, que pensou um pouco antes que poderia alcançar as estrelas do céu...”

Albert Barnes, em suas Notas sobre Daniel, explica: “A alguns do exército e das estrelas lançou por terra”. O chifre pequeno pareceu crescer até às estrelas e retirou-as de seus lugares e as lançou por terra. Em cumprimento disto, Antíoco derrubou e pisoteou os príncipes e os governantes e a hoste santa, o exército de Deus. Tudo o que se entende aqui se cumpriu com o acréscimo do que ele fez ao povo judeu. Ver I Macabeus 1 e II Macabeus 8,2. “E lhes extirpou” com indignação e desapreço. Nada poderia expressar melhor a conduta de Antíoco com relação aos judeus. (pág. 345).

Agora examinemos o versículo seguinte de Daniel 8: “Sim, engrandeceu-se até ao príncipe do exército; dele tirou o sacrifício costumado e o lugar do seu santuário foi deitado abaixo” (8,11).

Quem é “o príncipe do exército”? Strong define “príncipe” (sar) como “cabeça, capitão, chefe, general, governante, guarda, senhor, amo, príncipe, soberano, administrador”. Portanto, o chifre pequeno se engrandeceria contra o cabeça, capitão soberano do exército. Antíoco fez isto literalmente durante o seu governo, quando o sumo sacerdote Onias foi exilado e, mais tarde, assassinado da maneira mais cruel (em 171 a.C., ver p. 21). Ademais, Antíoco de maneira figurada engrandeceu-se contra o mais poderoso príncipe dos exércitos, Deus mesmo. A alcunha Epifânio, da palavra epifanía, manifestação divina, declarava Antíoco como o esplendor radiante, em forma humana, do divino, um deus manifestado em carne (ver, The House of Seleucus, de Edwin Bevan, Tomo 2, p. 154).

Antíoco IV lançou um cruel ataque contra o santuário judeu e a religião judaica, com o intento de fazer desaparecer a religião judaica. Proibiu o sacrifício costumado de cordeiros, e profanou o santuário. O livro de Macabeus descreve como foi tirado o sacrifício costumado e como foi desolado o santuário: “E em sua arrogância, entrou no santuário e tirou o altar de ouro e o candelabro e todo o mobiliário”. (I Macabeus 1,21). O ataque de Antíoco contra a religião judaica foi a pior crise que enfrentaram os judeus entre o cativeiro babilónico no ano 606 a.C. e a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C.. Depois de dois anos, a situação no santuário piorou: “E derramaram sangue inocente por todo lado do santuário, e profanaram o mesmo o santuário (...). O santuário converteu-se num deserto desolado” (I Macabeus 1,37.39). O objetivo de Antíoco era destruir a religião judaica e fazer com que todo o povo da Palestina se unisse e adotasse a sua religião pagã sob pena de morte. Ordenou: “Então o rei escreveu a todo o reino dizendo que todos deveriam ser um só povo e que cada um deveria renunciar às suas práticas pessoais (...) e suspender as ofertas vivas e os sacrifícios e as libações no santuário. (I Macabeus 1,41-42.45).

Agora examinemos o versículo seguinte de Daniel 8: “O exército foi-lhe entregue, com o sacrifício costumado, por causa das transgressões; e deitou por terra a verdade; e o que fez prosperou” (8,12).

A Bíblia diz que estas calamidades vieram sobre os judeus “por causa das suas transgressões”. Por outras palavras, foram os pecados dos judeus que trouxeram sobre eles essa calamidade. Foram os judeus os que, de facto, tomaram a iniciativa de helenizar Jerusalém. Uma delegação de judeus proeminentes veio a Antioquia, pouco depois que Antíoco assumiu o poder, pedindo permissão para converter Jerusalém numa Antioquia e levantar o sinal distintivo de uma cidade helênica - o ginásio. Mais tarde, depois que Antíoco deu posse ao seu próprio sumo sacerdote, o ginásio foi construído e logo fervilhavam jovens sacerdotes, que perseguiam o ideal helênico de força e beleza física. (Ver, Bevan, The House of Seleucus, tomo 2, pp. 168-181).

Agora examinemos os versículos seguintes: “Depois ouvi um santo que falava; e disse outro santo àquele que falava: Até quando durará a visão do costumado sacrifício, e da transgressão assoladora, visão na qual era entregue o santuário e o exército, a fim de serem pisados? Ele disse-me: Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado” (8,13-14).

Os teólogos ASD afirmam que fazer com que a cronologia de Antíoco se ajuste à profecia requer manipulação do texto bíblico. Mas na verdade, e prestando atenção ao texto hebraico, o texto não usa a palavra “dia” (em hebraico yowm e yamim), nem muito menos a palavra ano. Usa literalmente 2300 “hereb boger” (em hebraico, tardes e manhãs). Será aceitável entender as tardes e manhãs como sendo dias, e estes como sendo anos? Atendendo ao contexto da interrupção da oferta de sacrifícios no templo, o texto fala certamente de 2300 tardes e manhãs, em relação a esses sacrifícios (dois sacrifícios principais, um de tarde e um de manhã). Dizem os teólogos ASD que, nas profecias, as referências a dias devem-se supor como sendo anos.

Porém, é temerário, e sem fundamento, aplicar o princípio de “dia por ano” a todas as profecias em que se fala de “dias”. Reparemos, a título de exemplo:

1 – Em Jn 3,3, diz-se que eram necessários três dias para percorrer a cidade de Nínive. Não se tratam, obviamente, de três anos.

2 - Jonas disse que Nínive seria destruída em 40 dias (Jn 3,4), que não equivaliam a 40 anos.

2 – Em Os 6,1-3, diz-se que Deus, em dois dias, dará a vida, e ao terceiro nos fará erguer. O Novo testamento irá ver aqui uma profecia da ressurreição de Jesus ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Não se trata, como se vê, de três anos.

Portanto, querer fazer de 2300 tardes e manhãs, 2300 anos, isso sim, é manipulação, é especulação sem fundamento.

Mas apreciemos a expressão “2300 tardes e manhãs” em hebraico 2300 hereb boger. Olhemos para Gn 1,3-31. Neste texto de relato da criação, depois de relatada a criação de cada ser, o texto repete sempre: “foi a tarde e a manhã, e foi o primeiro dia... foi a tarde e a manhã, e foi o segundo dia...”. Literalmente: foi a hereb e a boger. A utilização do artigo já faz toda a diferença mencionando a manhã como parte distinta da tarde, e ambos formando, com o artigo, a unidade do dia. Os tradutores actuais traduzem “uma tarde e uma manhã...”, o que está mais de acordo com o sentido do texto de Génesis. Se Daniel quis significar de facto, e com toda a certeza para o leitor, que se tratavam de 2300 dias, porque é que ele não escreveu 2300 hereb, e as boger, de modo que o texto ficasse: “Até duas mil e trezentas tardes e as manhãs, e o santuário será purificado”, ou então, o que seria mais perfeito ainda: “até duas mil e trezentas tardes, e duas mil e trezentas manhãs e o santuário será purificado”, em vez de apenas 2300 tardes e manhãs? É que, se prestarmos atenção, e na sequência de Génesis, a forma semita e sacrificial de designar 1 dia é “a tarde e a manhã”, ou, mais correcto, uma tarde e uma manhã, uma vez que o tempo diário decorria segundo a sequência dos dois principais sacrifícios do templo: o da tarde, e o da manhã. Falando Daniel 8,13-14 sobre o tempo de interrupção dos sacrifícios, naturalmente ele fala-nos do número de sacrifícios que não se realizarão durante a desolação, e dá-nos assim o tempo que decorrerá. Se não se referisse aos sacrifícios, poderia mencionar dias como dias e não como tardes e manhãs. Reparemos que, na Bíblia, mencionam-se dias como dias, e não como tardes e manhãs: Lv 12,1-8; Gn 50,3; Ex 24,18; Dt 9,9; I Rs 19,8; Mt 4,2; Mc 1,12-13; Dn 12,11; Os 6,1-3; Jn 3,3. Isto torna-se patente se olharmos para 2300 tardes e manhãs como sendo 2300 sacrifícios (fora os sacrifícios intermédios, o sacrifício da tarde e o sacrifício da manhã eram os principais).

Ora, 2300 sacrifícios principais da tarde e da manhã são 1150 dias. Se Daniel quisesse designar realmente 2300 dias, ele teria escrito “duas mil e trezentas tardes e as manhãs”, conforme a maneira de escrever semita já apreciada no relato da criação,ou simplesmente “dois mil e trezentos dias” conforme a forma de escrever semita. Mas não o faz, e não o faz de forma bem propositada, precisamente para poder ser entendido pelos seus irmãos judeus, e não pelos pagãos gregos, desconhecedores da maneira de escrever judia. Não o faz porque não são 2300 dias, mas sim 1150 dias. Não nos podemos esquecer que Daniel escreve sob perseguição, e escreve de forma velada, simbólica, de modo que só os seus irmãos semitas entendam o que escreve.
O que são, seguindo esta análise, estes 1150 dias? Naturalmente que se trata do período em que estiveram proibidos os sacrifícios no templo, em virtude da profanação feita por Antíoco IV. Seguindo o relato do deuterocanónico I Macabeus, vemos, em I Mac 1,54, que em 15 de Quisleu de 167 a.C., Antíoco mandou colocar um altar dedicado ao Zeus Olímpico para substituir o grande altar dos holocaustos. Finalmente, em 164 a.C., o inimigo grego é vencido e expulso, e o templo é dedicado, purificado, em 25 de Quisleu desse ano. Esta luta do movimento do macabeus contra os gregos, e da consequente purificação, do templo, era já celebrada, tal como hoje, pelos judeus do tempo de Jesus com a Festa da Dedicação, o “Hannukka” (cf. Jo 10,22).

Vamos agora considerar o conceito “purificado”, atendendo à interpretação Adventista, que vê a purificação do santuário de Jerusalém como profecia da purificação do Santuário Celeste, efectuada por Cristo em 1844, findo o hipotético período de 2300 anos que, vimos, não tem base credível.

Diz-nos o deuterocanónico I Macabeus que o Santuário foi “purificado” por Judas Macabeu quando limpou os lugares santos, santificou os átrios, reconstruiu o altar, renovou os utensílios do santuário, e pôs tudo em seu devido lugar:
“Então Judas designou a certos homens para combater os que estavam na fortaleza, até que houvesse purificado o santuário. Escolheu sacerdotes de irrepreensível conversação, que se contentavam na lei, os quais purificaram o santuário e lançaram as pedras contaminadas em um lugar impuro. Quando consultados sobre o que fazer com o altar do holocausto que havia sido profanado, lhes pareceu melhor derrubá-lo para que não fosse reprovado por eles por causa de haver sido profanado pelos pagãos. Assim, o derrubaram e puseram as pedras em um lugar conveniente na colina do templo, até que viesse um profeta e lhes mostrasse que fazer com elas. Logo tomaram pedras inteiras de acordo com a lei, e levantaram um novo altar como o anterior e construíram o santuário e fabricaram as coisas que havia dentro do templo e santificaram os átrios. Também fabricaram taças novas e trouxeram ao templo o candelabro e o altar do holocausto e o de incenso e a mesa. E queimaram incenso sobre o altar, e acenderam as lâmpadas que estavam sobre o candelabro para que iluminassem o templo. Ademais, puseram os panos sobre a mesa, e estenderam os véus e terminaram todas as obras que haviam começado a fazer” (I Macabeus 4,41-51).
É importante fazer notar que, embora as comunidades protestantes, ou originadas do protestantismo, não aceitem a canonicidade deste livro, o mesmo apresenta-nos dados históricos de real valor.

O texto de Dn 8,14 apresenta-nos o termo hebraico “nikkaper”, procedente do hebraico “kipper”, que tem sido traduzido como “cobrir”, ou “expiar”. A Festa da Expiação (Lv 16), o Yom Kipur, nesta sua designação semita, radica na palavra kipper. Porém, o conteúdo da palavra kipper (expiar) é discutido. O significado de purificar parece secundário, por causa de vários textos. Por exemplo, no caso de não se descobrir um assassino, a cidade mais próxima sorteia uma vaca, que é morta por um sacerdote (Dt 21,3-5). Acima da vaca morta os anciãos lavam as mãos em sinal de purificação e inocência (Dt 21,6-7). Depois segue uma explicação: “Cobre (kapper) este sangue para o teu povo, Israel...; e para vós, o sangue derramado (em substituição) será coberto (nikkapper)” (Dt 21,8). Pelo rito, o crime é “coberto” e, por este acto, afastado, de sorte que não existe mais. Em Is 47,11 há algo semelhante. Deus manda a perdição para Babel. A tentativa de cobri-la (kapper) com a esperança, a fim de eliminar os efeitos, deve fracassar.
Daqui resulta que traduzir Dn 8,14 por “será purificado”, parece temerário, embora se possa admitir esta tradução. Na verdade, embora a temática da expiação comporte a purificação, no sentido eliminar o pecado, se prestarmos atenção ao vocabulário hebraico, vemos diversos termos para se produzir o afastamento/eliminação/purificação do pecado, dos quais os mais importantes são: tirar/carregar/levar/fazer cessar (nasa) o(s) pecado(s) (hatta,ah [Ex 32,32]); ´awon (Lv 10,17; Jr 33,38); pesá (Jb 7,21; I Rs 8,50); perdoar (salah) o(s) pecado(s) (hatta´ah [I Rs 8,34]) e cobrir/expiar (kipper) o(s) pecado(s) (hatta,ah [Ex 32,30]).

Outro aspecto a considerar, de importância capital para a nossa reflexão, é que a expressão literal hebraica para designar puro é tahor, e para impuro é tumah. Estas expressões são as usadas em hebraico para se falar em pureza/impureza cultual. Ora, o termo hebraico nikkapper não tem qualquer relação etimológica com as expressões hebraicas de puro e impuro. Daqui resulta que traduzir nikkapper por “purificado” exige uma chamada de atenção, posto de kipper é, como se viu nos exemplos apresentados anteriormente, referente ao cobrir uma situação de pecado, uma forma de expiação, de cobertura, de afastamento de uma situação irregular, contra a Lei de Deus. Terá que ser neste sentido que se deve entender a tradução de “purificado” presente em Dn 8,14. De outro modo, a se entender esta passagem como uma purificação cultual, não se entende porque não se usa uma palavra com origem no termo hebraico tahor, expressão esta que se usa precisamente em situação de impureza cultual.

Temos, portanto, nesta passagem de Dn 8,14 a expressão Kipper como sendo a de regularizar uma situação desfigurada pelo pecado, pela profanação do templo, posto que a idéia de “cobrir”, ou “será coberto”, se podem entender por uma restauração, uma legitimação. Se atendermos ao que se falou sobre Dt 21, 6-7 e Is 47, 11, onde surge o termo Kipper, temos no primeiro a cobertura do sangue derramado, isto é, a sua legitimação, restauração, eliminação do conteúdo de pecado que ele implicava, e no segundo a tentativa de justificar, restaurar, legitimar uma cidade pela esperança.

Deste modo, a tradução de “será purificado”, em Dn 8, 14 não nos parece adequada. Será, conforme se encontra em muitas traduções, a utilização das expressões:
Tradução de Darby (1889): E me disse: Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; logo o santuário será restaurado.
Tradução Literal de Young (1993): E me disse: Duas mil e trezentas tardes e manhãs; logo o santuário será restaurado.
Versão King James Moderna (1993): E me disse: Duas mil e trezentas tardes e manhãs; logo o santuário será restaurado.
Tradução Literal de Young (1898): E me disse: Até tardes manhãs duas mil e trezentas, então o lugar santo será declarado correto.

Esta idéia de restauração, e legitimação está, aliás, de acordo com tudo o que já foi explicado atrás acercado do texto de Dn 8. Já foi visto que se trata da dedicação, restauração do templo de Jerusalém feita pelos Macabeus depois da derrota de Antíoco Epifânio (ver pp. 20-26). Resta, a propósito, lembrar ao leitor que o Yom Kipur de Lv 16, a Festa da Expiação judaica, não se trata da purificação do templo, mas sim de um ritual de expiação dos pecados do povo, de modo que, em Dn 8, 14 não falamos da mesma realidade de Lv 16, embora se usem expressões etimologicamente similares. Não se entende, assim, como relacionar o Yom Kipur de Lv 16, onde a purificação tem como objecto o pecado do povo, com Dn 8, 14, onde o objecto já não é o povo, mas sim o templo, fazendo deste uma profecia de uma purificação do Templo Celeste! Isto será tema de conversa mais adiante, quando falarmos acerca de uma consequência verdadeiramente herética desta tese (pp. 31-32).

Passemos agora a outra questão, também esta muito importante para entendermos correctamente Dn 8, e para entendermos também as mentiras feitas a partir de uma interpretação manipulada.

Do que é que o templo será purificado?

O santuário está a ser recuperado por ter sido pisoteado e derrubado pela Abominação Desoladora. A Abominação Desoladora começou quando Antíoco Epífânio profanou o templo de Deus oferecendo sacrifícios a ídolos sobre o santo altar de Deus.

Durante a época de Jesus, as ações de Antíoco Epífânio estavam ainda frescas na mente do povo. Entenderam que Antíoco era a Abominação Desoladora. O historiador judeu Flávio Josefo, um contemporâneo de Jesus, escreveu sobre Antíoco: “E esta desolação ocorreu de acordo com a profecia de Daniel, que havia sido pronunciada 408 anos antes; porque declarou que os macedônios dissolveriam esse culto por algum tempo” (F. Josefo, Antiguidades judaicas).

Jesus referiu-Se à abominação no livro de Daniel para advertir seus seguidores que uma desolação semelhante havia de acontecer à nação judaica no futuro: “Portanto, quando virdes no lugar santo a abominação desoladora de que falou o profeta Daniel (o que lê, entenda), então os que estão na Judéia, fujam para os montes” (Mt 24,15-16).

Essa abominação teve lugar no ano 68 d.C., quando o exército romano sitiou Jerusalém, colocando seus estandartes dentro da área sagrada que se estendia mais além dos muros do templo, profanando-o. Os cristãos reconheceram isto como o sinal para partir de Jerusalém, e quando o exército se afastou temporariamente daquele lugar, os cristãos saíram, e nem um só cristão morreu na subseqüente destruição de Jerusalém por Tito no ano de 70 d.C.. Vale a pena observar, justamente para reforçar a idéia de que o texto nada tem a ver com qualquer período de 2300 anos, que Jesus refere a abominação desoladora de Dn no passado, e no futuro, e nunca no seu presente. Portanto, Dn 8,13 afirma categoricamente, segundo a interpretação ASD que a devastação desoladora duraria 2300 anos, perpassando o tempo do próprio Cristo, o que não resulta da leitura de Mt 24,15-16.

Mas na mesma linha de pensamento também é digno de nota outro aspecto interessante. Já foi tratado, quando se falou acerca das Setenta Semanas de Anos (cf. pp 17-20) o sentido da expressão “abominação devastadora”. Ora, partindo da interpretação adventista, não se entende como é que, em Dn 8,13 esta abominação dura 2300 anos, e em Dn 9,27 esta abominação começa com a morte de Cristo. Naturalmente me respondereis que se trata de profecias distintas. Já se falou sobre o seu sentido e possibilidades de interpretação! Jesus, ao se referir à abominação desoladora, de que fala o profeta Daniel (Mt 24,15) tem em mente Dn 8,13; 9,27; 11,31 e 12,11, todos textos que falam desta abominação desoladora.

Examinemos agora os versículos seguintes: “Veio, pois, para perto donde eu estava; ao chegar ele, fiquei amedrontado, e prostrei-me com o rosto em terra; mas ele disse-me: Entende, filho do homem, pois esta visão se refere ao tempo do fim” (8,17).

“E disse: Eis aqui te farei saber o que advirá no último tempo da ira; porque esta visão se refere ao tempo determinado do fim” (8,19).

Devemos ter consciência de que “o tempo determinado do fim” não é o mesmo que “o fim do tempo”. Antes, refere-se ao fim do período particular associado com esta profecia. Neste caso, é indicado claramente “o fim da ira”, a saber, das aflições que foram permitidas sobrevir ao povo judeu.

Examinemos a seguir a explicação de Gabriel acerca da visão de Dn 8:

“Aquele carneiro que viste com dois chifres são os reis da Média e da Pérsia” (8,20).

“Mas o bode peludo é o rei da Grécia; o chifre grande entre os olhos é o primeiro rei” (8,21).

“O ter sido quebrado, levantando-se quatro em lugar dele, significa que quatro reinos se levantarão deste povo, mas não com força igual à que ele tinha” (8,22).

“Mas, ao fim do seu reinado, quando os prevaricadores acabarem, levantar-se-á um rei de feroz catadura e entendido de intrigas” (8,23).

No versículo 23 descobrimos que o poder do chifre pequeno surgiria “ao fim do seu reinado”. Isto se refere aos últimos tempos das quatro divisões do império grego, pouco antes que fossem conquistados por Roma. As quatro divisões começaram na batalha de Ipso no ano de 301 a.C.. O reino da Macedônia caiu no ano 168 a.C., o de Cassandro no ano 146 a.C., o dos Selêucidas (sobre o qual governava Antíoco), no ano 65 a.C.. O de Ptolomeu durou até o ano 30 a.C.. Considerando que o reino quádruplo deixou de existir quando a Macedônia caiu no ano 168 a.C., a profecia requer que o chifre pequeno surja pouco antes desse ano. Antíoco reinou do ano 175 AC até o ano 164 AC.

Agora continuemos com a explicação de Gabriel da visão de Dn 8:

“Grande é o seu poder se fortalecerá, mas não por sua própria força; causará estupendas destruições, prosperará e fará o que lhe aprouver; destruirá os poderosos e o povo santo” (8,24).

Antíoco era “poderoso”, embora não tanto como o chifre grande, Alexandre. O texto diz que Antíoco não era poderoso com força própria. Isto mostra que as calamidades que atraiu sobre os judeus eram, segundo o modo de entender do tempo, uma acção providencial de Deus para punir os pecados do povo judeu (cf. Dn 9,5-14). Uma situação semelhante já havia ocorrido antes, aquando do exílio da Babilónia. A maneira pela qual Antíoco destruiu Jerusalém e martirizou muitos hebreus é um notável cumprimento da profecia de que “causará estupendas destruições, prosperará e fará o que lhe aprouver; destruirá os poderosos e o povo santo”.

Prossigamos com a explicação de Gabriel da visão de Dn 8:

“Por sua astúcia nos seus empreendimentos fará prosperar o engano, no seu coração se engrandecerá, e destruirá a muitos que vivem despreocupadamente; levantar-se-á contra o Príncipe dos príncipes, mas será quebrado sem esforço de mãos humanas” (8,25).

O texto diz que Antíoco “destruirá a muitos que vivem despreocupadamente”. Isto refere-se à sua política de conservar sempre a aparência de amizade em relação aos que queria destruir. Desse modo podiam facilmente levar a cabo seus propósitos, enquanto os seus inimigos estavam confiantes (cf. Notes on Daniel, de Albert Barnes, pp. 354-355). Continua o texto, “será quebrado sem esforço de mãos humanas”. Esta é uma espantosa profecia que indica como morreria Antíoco. Note-se como se cumpriu esta profecia, apreciando o texto do deuterocanónico II Macabeus: “Mas o Senhor Todo Poderoso, o Deus de Israel, castigou-o com uma peste incurável e invisível; pois, tão logo havia pronunciado estas palavras, lhe sobreveio uma dor nas entranhas que não lhe saía e um penoso tormento de suas partes internas. Tudo isso era o mais justo, porque ele havia atormentado as entranhas de outros homens com muitos e estranhos tormentos. Sem demora, não cessava de vangloriar-se, e estava todavia cheio de orgulho, respirando fogo em sua ira contra os judeus e ordenando-lhes apressar a viagem; sucedeu, contudo, que caiu da carruagem que sacudia violentamente; caindo, pois, todos os membros de seu corpo ficaram muito doloridos. E assim, o que pouco antes pensava que podia dar ordens à beira mar (era orgulhoso mais além de sua condição) e pesar as altas montanhas numa balança, foi lançado ao solo, e levado em uma maca ao lombo de um cavalo, mostrando a todos o manifesto poder de Deus. De tal maneira que os vermes saíam do corpo desse homem ímpio, e enquanto vivia em aflição e dor, a sua carne caía, e a imundícia de seu fedor era repulsiva a todo o seu exército.
E por causa do seu fedor insuportável, ninguém podia suportar transportar o homem que pouco tempo antes pensava que podia alcançar as estrelas do céu. Então, infectado, começou a abandonar seu grande orgulho, e vir ao conhecimento de si mesmo por meio do chicote de Deus, enquanto a sua dor aumentava a cada momento. E quando já não podia suportar o seu próprio fedor, disse estas palavras: «Há que submeter-se a Deus, um homem mortal não deve considerar-se a si mesmo, orgulhosamente, como se fosse Deus...» Assim, o assassino e blasfemo, havendo sofrido o mais dolorosamente, enquanto suplicava a outros homens, morreu uma morte miserável num país estranho nas montanhas” (II Macabeus 9,5-12,28).

Albert Barnes acrescenta: “Todos os testemunhos acerca da sua morte, pelos autores dos livros dos Macabeus, por Josefo, por Políbio, por Q. Curcio, e por Arriano, concordam em representá-la como acompanhada de cada uma das circunstâncias de horror que muito bem pode supor-se estarem presentes numa partida deste mundo, e tendo todas as marcas distintivas do justo juízo de Deus. A divina predição de Daniel, de que a sua morte seria «não por mãos humanas», no sentido de que o instrumento não seria humano, senão que a sua morte seria infligida directamente por Deus, cumpriu-se plenamente.” (Notes on Daniel, p. 355).
A evidência mais convincente de que Daniel 8 se refere a Antíoco Epífânio é o facto de que Daniel 11 explica Daniel 8 com grande detalhe, e que o chifre pequeno é interpretado desde o v. 21 em diante. Embora Urias Smith tentasse acomodar a história para que se ajustasse à profecia, esta sua explicação não é senão uma parodia. Somente Antíoco se ajusta às suas especificações.

Algumas vezes esquecemos que Daniel escreveu para o povo judeu. Daniel escreveu para advertir os judeus da maior crise que haveria de sobrevir ao povo de Daniel entre o tempo do cativeiro na Babilónia e a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C: o ataque de Antíoco IV contra os judeus. Deus nunca deixou Seu povo sem aviso quanto a futuras situações de urgência. O livro de Daniel afirma que as calamidades teriam lugar sob o tirano sírio.

Sabendo que os capítulos 11 e 12 transcorrem sobre o mesmo terreno que o capítulo 8, podemo-nos perguntar que equivalências proporcionam estes capítulos para 8,10-14. Ajuda-nos o paralelismo entre o 8 e o 11 a entender melhor a passagem de 8,14? Comparemos a profecia do templo de Daniel 8 com a profecia do templo em Daniel 11. O tema de cada passagem é o mesmo. Daniel 8 está expandido em Daniel 11. Em cada um deles um poder blasfemo e conquistador vem contra o povo santo. Em ambos, o Príncipe da Aliança, o seu santuário, e os adoradores são derrubados. Em ambos se promete que essa iniquidade não prevalecerá para sempre, porquanto Deus decidiu vingar o Seu povo e a verdade, e derramar a sua indignação sobre o opressor idólatra e perseguidor. Esta resposta de Deus não há de ter lugar senão no “tempo do fim” (Daniel 8,17;11,35,36) depois de 2300 tardes e manhãs, isto é, depois dos 1150 dias em que se suspenderam 2300 sacrifícios principais da tarde e da manhã.

A purificação do santuário desde a profanação em Daniel 8,14 corresponde à profanação do santuário mencionada em Daniel 11,31. Um exame da palavra hebraica equivalente a “profanar”, e um estudo de seus sinónimos e seus antónimos, fornece muita luz sobre o significado da palavra traduzida como “purificado” em Daniel 8,14. É impossível exagerar o facto de que Daniel 11,31 está a referir, em diferentes palavras, o mesmo que Daniel 8,9-13, e que, portanto, pode-se ter uma compreensão mais ampla de Daniel 8,14 por meio da segunda descrição expandida da situação que torna necessária a “purificação”.


(Idem)

Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te, ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocará antes de te conhecer? Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo de invocar outrem. Porque, porventura, deves antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas como invocarão aquele em que não crêem? Ou como haverão de crer que alguém lhos pregue? Com certeza, louvarão ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam o encontram e os que o encontram hão de louvá-lo (S. Agostinho, Confissões)



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