Ainda a questão do aborto: para lá dos anátemas...
Já em tempos aqui falei da "Vinha de Raquel" e das suas actividades a propósito das inúmeras mensagens do Avlis sobre o aborto. Ando com vontade de escrever mais sobre o assunto, mas vou esperando momento mais propício. Contudo, o "Público" de hoje traz algumas notícias sobre o assunto que podem sugerir muita matéria de reflexão e debate. Aqui vão elas.
Alef
Associações Pró-vida Acompanham Mulheres Que Interrompem Gravidez
O anúncio vem nas páginas de classificados do PÚBLICO. Uma única palavra, a letras negras e maiúsculas, interroga: "Abortou?". Depois especifica: "Tem ataques de choro, angústia e pesadelos?" A Associação Sabor da Vida é responsável pela interpelação e deixa os seus telefones para futuros contactos, porque constata que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) pode ser traumática e porque quem a pratica não sabe, muitas vezes, a quem recorrer.
"Às vezes parece que a solução do aborto é fácil, mas depois as mulheres sentem-se sós e desacompanhadas", explica Eugénia Botelho, da Associação Sabor da Vida (ASV), que tem recebido várias chamadas de pessoas que tencionam vir a fazer um aborto. De todos os telefonemas, apenas um era de uma mulher que já tinha abortado. Do outro lado da linha, a presidente da associação ouviu chorar e depois a mulher acabou por desligar.
Mas há quem tenha coragem de falar, mesmo que seja muitos anos depois, para confessar o sentimento de culpa, para admitir que se sente só na sua dor, para fazer o luto e poder encontrar alguma paz de espírito. O Movimento Defesa da Vida (MDV), o projecto da diocese de Lisboa "Vinha de Raquel", as associações Vida Norte e Mulheres em Acção têm acompanhado mulheres que sofrem de trauma pós-aborto.
"A primeira mulher que atendi estava grávida de cinco meses e chorava convulsivamente porque tinha morto um filho, cinco anos antes", conta Graça Mira Delgado, do MDV.
Nos dez anos de existência do movimento, o MDV, uma instituição particular de solidariedade social que desenvolve actividades de atendimento nas áreas do planeamento familiar, já acompanhou uma centena de casos.
As mulheres são encaminhadas para uma entrevista com um psicólogo ou com um técnico com formação específica. "O trabalho é de escuta e consciencialização de que têm de se desculpar a si próprias". O número de sessões são "as necessárias" e, por vezes, é preciso recorrer à terapia; noutras é aconselhada ajuda psiquiátrica.
Também as associações Sabor da Vida, Vida Norte e Mulheres em Acção oferecem ajuda psicólogica.
Chorar o filho que não nasceu
"As mulheres sentem culpa e sentem-se vítimas de uma situação: um companheiro que as forçou, uma mãe que não queria ser avó tão cedo", define Graça Mira Delgado. O grande problema das que fazem uma IVG é que não têm espaço para chorar o "seu bebé", acreditam a representante do MDV e Eugénia Botelho da ASV.
O luto pela criança que não nasceu é importante, concorda Claudia Muller, da "Vinha de Raquel", um projecto de retiros para mulheres que tenham abortado, da responsabilidade do Serviço Diocesano da Defesa da Vida, do Patriarcado de Lisboa.
"Quando uma criança morre é preciso fazer o luto. É preciso exteriorizar este sentimento e estabelecer uma relação com aquela criança, dando-lhe, por exemplo, um nome", adianta ainda. Nos EUA, de onde o projecto "Vinha de Raquel" é oriundo, há até quem faça lápides com o nome do bebé.
O projecto procura sobretudo que a mulher tenha "noção plena que houve uma morte e que permitiu que essa acontecesse", sublinha Claudia Muller. Para a responsável pelos retiros essa "noção de culpa" é essencial para "enfrentar a realidade" e é o "primeiro passo para a libertação". "Depois, há que tentar trabalhar a situação no sentido de não negar o que se passou, nem desculpabilizar", acrescenta.
O retiro já foi realizado por cerca de duas dezenas de pessoas. Durante um fim-de-semana, cerca de cinco mulheres - das mais variadas idades, houve já algumas com mais de 60 anos que sentiram necessidade de o fazer -, contam as suas histórias, fazem exercícios práticos e espirituais, acompanhadas por um sacerdote, um psicólogo e pessoas com formação recebida nos EUA. Claudia Muller defende o trabalho de grupo porque as mulheres sentem falta de partilhar as suas experiências, de perceberem que não são caso único.
Ao longo do ano, há pessoas que se conheceram no retiro e que voltam a encontrar-se, quando se sentem mais debilitadas, por exemplo, quando recordam a data em que interromperam a gravidez. O fim último do trabalho da "Vinha de Raquel" é ajudar as mulheres a "ganhar alguma paz interior".
Esse é o objectivo de todas as associações que ajudam mulheres que sofram de trauma pós-aborto. "Como cristã, acredito que a pessoa deve saber perdoar-se. Mas para quem não é cristão o percurso a fazer é o da reconstrução da sua auto-estima", conclui Eugénia Botelho, da ASV.
Por BÁRBARA WONG
"Público", Segunda-feira, 02 de Fevereiro de 2004
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jornal.publico.pt]
Desconforto Junto de Bebés e Mulheres Grávida
Depois de ter sido acompanhada por um amigo ou familiar no dia em que interrompe voluntariamente a gravidez, a mulher fica só e jamais confessa o que sente àquela pessoa que testemunhou aquele momento. Por vezes até se afasta desse familiar ou amigo, referem os responsáveis das associações pró-vida que o PÚBLICO contactou.
O que é que a mulher sente, depois de fazer um aborto? "Sente que não pode confessar a ninguém que tem dúvidas, porque foi forte quando tomou a decisão de abortar", responde Graça Mira Delgado, do Movimento Defesa da Vida (MDV).
Por isso isola-se e não fala sobre o assunto. Mas, a curto prazo, os sintomas desse isolamento começam a fazer-se sentir. Segundo o "site" dos retiros da "Vinha de Raquel", www.rachelsvineyard.org, os principais sintomas pós-aborto são: depressão, ataques de choro, incapacidade de se perdoar a si própria, enorme tristeza, raiva, desordens alimentares, ataques de ansiedade ou de pânico, distúrbios durante o sono, desconforto junto de bebés ou de mulheres grávidas.
O aborto pode ter "efeitos colaterais" na vida das mulheres, muitas vezes causando problemas familiares, acrescenta Claudia Muller, da "Vinha de Raquel".
Por vezes não são só as mulheres que sofrem depois da interrupção voluntária da gravidez. Também os tais familiares que a acompanharam e a ajudaram a decidir têm distúrbios semelhantes. "X tem 21 anos e a namorada fez um aborto há dois. Sente-se culpado por ter ajudado a matar o filho. Pensa muitas vezes na criança. Deu-lhe um nome. Fala com o filho não nascido e pede-lhe desculpa", relata Alexandra Tété, da associação Mulheres em Acção.
Por B.W.
"Público", Segunda-feira, 02 de Fevereiro de 2004
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jornal.publico.pt]
"Se o Interlocutor Diz Que o Aborto Foi Um Erro, a Mulher Vai Sentir-se Culpada"
São as condições em que é feita a interrupção voluntária da gravidez (IVG), em segredo, de forma clandestina e com o peso da criminalização que leva as mulheres a ter sintomas traumáticos, afirmam Duarte Vilar, da Associação para o Planeamento da Família (APF) e Helena Pinto, da União Mulheres Alternativa de Resposta (UMAR).
"Não é a sensação da perda do feto, isso só acontece se existirem dúvidas ou se se não tomou a decisão de livre vontade. Mas a maioria das mulheres decidem e ponto final", considera Duarte Vilar.
À APF já chegaram algumas mulheres, poucas, depois de terem abortado. Os técnicos da associação encaminham-nas para o centro de saúde, de maneira a que possam fazer um "chek-up", e depois são orientadas para uma consulta de planeamento familiar. "Nunca nos apareceu uma situação dessas, mas caso haja sintomas de depressão encaminharemos para um serviço de saúde mental", acrescenta Duarte Vilar.
"A clandestinidade, o não saber a quem recorrer, não poder falar abertamente, a questão financeira, tudo isso cria uma situação complicada na cabeça das mulheres. Quando há trauma, é muito devido à forma como o aborto é feito", considera Helena Pinto, da UMAR - organização não governamental que se dedica à defesa dos direitos das mulheres e que se tem posicionado pelo "sim" ao aborto -, acrescentando que "a sociedade não deve condenar".
"Nós não condenamos, não apontamos o dedo, mas damos a mão às pessoas que precisam. Claro que preferimos que nos contactem antes de fazer o aborto", replica João Paulo Carvalho, da Vida Norte.
A mesma posição têm as outras associações pró-vida. É óbvio para todas que a mulher deve assumir a "culpa" e fazer o luto. "A pessoa bem pode tentar enganar-se, mas tudo o que é vivo cresce e 'aquilo' que tem dentro de si está a crescer. Se não é um ser humano, é o quê? As pessoas acham que é um amontoado de células, mas 'o essencial é invisível aos olhos', como diz Saint-Exupéry", defende Eugénia Botelho, da Sabor da Vida.
"Se, quando a mulher procura ajuda, o interlocutor diz que [o aborto] foi um grande erro, claro que ela se vai sentir culpada. A IVG é realizada nas primeiras semanas, por isso não devemos pôr uma mulher a pensar como quem vive plenamente a gravidez", reage a dirigente da UMAR.
Em 2001, o psiquiatra Álvaro Carvalho fazia um balanço sobre os "Aspectos Psicológicos da Interrupção Voluntária da Gravidez" e, na ausência de estudos portugueses, analisava os trabalhos feitos na Grã-Bretanha e nos EUA, na década de 80, e concluía que "não é comum registarem-se sequelas emocionais significativas nas [mulheres] que a concretizam [à IVG], em registo legal, em particular durante as 12 semanas de gestação".
A maioria das inquiridas (75 por cento) declarava sentir alívio; apenas 15 por cento referiam culpabilidade e depressão e 10 por cento consideravam a experiência negativa, com repercussões que iam da disfunção sexual à descompensação psicótica ou mesmo ao suicídio. Segundo um estudo feito no Reino Unido, as consequências negativas são mais comuns em mulheres "com atitude ambivalente em relação à IVG, por motivos morais e religiosos", acrescentava.
Por BÁRBARA WONG
"Público", Segunda-feira, 02 de Fevereiro de 2004
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jornal.publico.pt]
José Lutou por Filho Que Maria Decidiu Não Ter
Ainda não tinham passado quatro meses do início do namoro quando Maria (nome fictício), na altura com 21 anos, dá a notícia: "Estou grávida". De repente, o mundo do casal desmorona-se e "tudo é um problema". Maria não é efectiva na empresa onde trabalha, o relacionamento amoroso é recente, as famílias não vão apoiar... "Agimos por desespero", lembra o namorado, José (nome fictício), hoje com 23 anos. A solução é uma só, chama-se interrupção voluntária da gravidez, "é o nome mais suave que se dá ao aborto", ironiza.
Só que José começa a ler, a investigar na Internet. Quanto mais lê, mais acredita que abortar será um erro. "O que nos levava a querer fazer aquilo não era a falta de meios, mas o medo de enfrentar uma situação nova. O aborto era a solução mais fácil, mas se o fizéssemos o trauma seria muito maior", analisa.
Perante aquilo a que José chama "consciencialização", ele e a namorada desentendem-se, ela mantém a mesma opinião, ele não. "Eu dizia de tudo, ia buscar coisas à Net, ajoelhava-me a pedir-lhe que caísse nela", recorda. Mas ela tem o apoio da irmã mais velha, que a mantém consciente de todos os inconvenientes de ter um filho naquela altura da sua vida.
José acaba por perder a batalha quando a namorada o abandona e sai da sua casa, em Gaia. Um dia, Maria liga-lhe, está numa clínica, no Porto, onde vai abortar. "Fui à PSP, à Polícia Judiciária, ao Ministério Público. Fui à clínica e fiz um escândalo tão grande...".
José desespera, quer que o Ministério Público lhe dê poder sobre o filho que a namorada traz no ventre, mas não há lei que preveja tal situação, lamenta. "Quando aquelas meninas escrevem na barriga 'Aqui mando eu' esquecem-se que um bebé não se faz sozinho. O homem é impotente para fazer seja o que for e eu sofri muito por não poder fazer nada", reflecte.
A sua única vitória é, graças à denúncia, a clínica fechar poucos meses depois. Não foi naquele dia, mas noutro. Maria atravessa a fronteira e acaba por cumprir a sua decisão em Espanha. Pouco tempo depois, liga a José, precisa do seu apoio, chorava-lhe ao ouvido. Maria está arrependida. Ainda hoje chora quando vê um bebé, martiriza-se a pensar se seria menino ou menina.
"O sofrimento é bem maior do que se tivéssemos tido aquele filho". José não condena a namorada, ela "acreditou que aquela era a solução", explica. Hoje, passado um ano, continuam juntos e o maior sonho de Maria é voltar a engravidar.
Regularmente, o casal volta ao tema aborto. Falam sem se recriminar, falam "de uma forma diferente", fazem-no também para ajudar outras pessoas que já passaram pelo mesmo ou que ponderam vir a fazê-lo. Maria e José colaboram com uma associação pró-vida. "Fazemos isto porque o coração nos obriga", precisa José.
Por B.W.
"Público", Segunda-feira, 02 de Fevereiro de 2004
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