Missa em férias, missa de férias
1. Os católicos que podem e gostam - como toda a gente que pode e gosta - vão para férias no Verão. Os padres - que já não são muitos - têm que se desdobrar para atender os que ficam e os que vão. A organização das paróquias e capelanias não se encontra coordenada com essa movimentação dos fiéis. Ao fim das férias, alguns confessam que viveram como os pagãos: "Faltei várias vezes à missa e, quando o consegui, foram momentos tão aborrecidos que o melhor era não ter ido." A participação na eucaristia não parece ter grande peso na escolha do roteiro de férias. Os responsáveis pela evangelização e pela pastoral também não mostram uma preocupação excessiva com estas disfunções de Verão, compensadas, em parte, pelos emigrantes que retornam a casa e à religião da sua infância.
Note-se que as disfunções da pastoral dominical manifestam-se durante todo o ano. O "fim-de-semana", o desporto, as saídas, as festas, as boîtes, etc., já não rimam com o antigo domingo convocado pelo campanário. É verdade que em Portugal não existe nenhuma organização cívica, cultural, política ou religiosa que reúna tanta gente como a Igreja Católica. As estatísticas indicam, no entanto, que a participação na missa dominical - seja qual for a interpretação do fenómeno - está em queda.
2. João Paulo II nunca se resignou a este declive. Logo que terminou o Ano do Rosário, lançou imediatamente o Ano da Eucaristia. Vem de Outubro de 2004 e vai até Outubro de 2005. E talvez não seja por acaso que ele publicou mais documentos sobre a eucaristia do que os outros papas do século XX todos juntos.
A profusão de textos não basta para superar as dificuldades em torno da eucaristia. Por um lado, é considerada o cume, a fonte e o alimento da vida da Igreja. Nas congregações religiosas é de regra a missa diária. Vigora o preceito da missa dominical para todos os católicos. Muito do tempo dos padres é gasto com missas pouco preparadas, nestas e noutras situações. Por outro, existem no mundo dioceses maiores do que Portugal inteiro e quase sem clero. Entre nós, temos paróquias quase desabitadas - mesmo em Lisboa - com pároco e outras, que têm mais população do que algumas dioceses, muito mal servidas.
Estas disfunções - que não são as únicas - prendem-se com a deslocação maciça para o litoral e com as mudanças sócio-culturais. O resultado tem algo de paradoxal: onde há fome de pão eucarístico não há possibilidade de o encontrar - existem muitas comunidades sem eucaristia - e onde é possível servi-lo, parece que há cada vez menos quem o deseje.
3. Como foi referido, João Paulo II multiplicou os documentos sobre a importância e a necessidade da eucaristia. Como não desfez os tabus em torno dos chamados "ministérios ordenados" - serviços sacramentais da Igreja -, diz-se que enalteceu os fins, mas esqueceu-se dos meios para os atingir.
Embora seja uma forma pertinente de abordar a situação da liturgia eucarística, com o tempo, dada a recusa em alterar certas determinações legais - transformadas em categorias teológicas -, esta problemática corre o risco de se tornar uma rotina sem consequências.
Na altura em que se preparam congressos, sínodos, semanas teológicas e bíblicas sobre a eucaristia (1), a grande revista de pastoral litúrgica, La Maison-Dieu, dedicou um número especial à grande diversidade e à evolução da frequência das celebrações eucarísticas, ao longo de dois mil anos. Isto significa que não estamos condenados a um só modelo. Já houve vários e podem nascer outros completamente fiéis à Ceia do Senhor. Importa, por isso, questionar os modelos e as formas exclusivistas de celebração. Os próprios sacramentos - entendidos no interior da sacramentalidade da vida da Igreja, sacramento do mistério pascal de Cristo que é o sacramento de Deus e do mundo - não esgotam as formas de prática cristã, nem das celebrações simbólicas da férias.
A substituição de todas as celebrações pela missa corre o risco de a banalizar e de não descobrir muitas outras expressões do mistério cristão que ajudariam a compreender a profundidade humana e divina da própria eucaristia. E não estou a pensar, apenas, na "Liturgia das Horas", nas devoções como o Rosário ou a Via-Sacra e nas diversas formas de religião popular (2). É preciso redescobrir o sentido da criação, os grandes enigmas do sagrado e as diferentes formas de religião que o exprimem ou deformam; revalorizar os lugares sagrados construídos, escutar a música e ler os grandes textos dos místicos das diversas religiões, a começar pelos místicos cristãos, para recolher a polifonia da vida (3).
Mas as férias podem ser o tempo para escutar a voz do grande silêncio, o mistério do mundo, para fazer a experiência da oração, para acolher e dizer o mistério de Deus, a sós ou em grupo. As férias existem para refazer a vida, para saber que o melhor da vida não tem porquê.
(1) Destaco: Semana Bíblica de 21 a 26 de Agosto 2005, organizada pelos Capuchinhos; Semana de Verão de Teologia - ISTA de 22 a 26 de Agosto 2005, organizada pelos dominicanos, ambas em Fátima. (2) Cf. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre a Piedade Popular e a Liturgia, Paulinas, Lisboa, 2003.(3) Catherine David et Jean-Philippe de Tonnac (org.), L"Occident en quête de sens, Maisonneuve et Larose, França, 1996; Juan Martín Velasco, Doze Místicos Cristãos, Vozes, Petrópolis, 2003; Javier Melloni Ribas, El Uno en lo Múltiple. Aproximación a la Diversidad y Unidad de las Religiones, Sal Terrae, Santander, 2003.
Frei Bento Domingues, O.P.
«Público» , 2005-07-17