Tópico iniciado por Alef que deu origem a uma reflexão que me parece interessante. Transcrevo o texto inicial escrito por Alef:
Cristianismo, verdade e relativismo
O aparecimento desta questão noutro tópico parece-me uma boa oportunidade para lançar este tema como tópico autónomo, mesmo que o pouco tempo e a falta de engenho me indiquem que merecia uma melhor introdução… Fico-me por algumas ideias ao correr das teclas… Aqui vai, mesmo assim, e, como sempre, todos teremos oportunidade de pensar um pouco sobre estas questões tão velhas e tão actuais…
Mesmo sem entrarmos em grandes arrazoados filosóficos, convém notar que
esta questão é eminentemente filosófica e tem levado à produção de montanhas de livros, desde a Antiguidade até aos dias de hoje.
De uma forma muito simplista, para o homem comum
existe a ideia de que há dois modelos de verdade:
uma, de tipo «objectivista», que defende que a verdade «existe aí», independentemente de mim e da minha percepção dessa realidade «objectiva», e
outra, de tipo «subjectivista», que defende que toda a verdade é uma construção do sujeito («subjectum»), uma vez que o mundo real «é» aquilo que eu digo dele e isso é sempre uma construção. Os primeiros atacam os segundos de
«relativistas», os segundos atacam os primeiros de
ingénuos. Possivelmente, ambas as posições, nas suas formas mais típicas, assentam em falsos pressupostos (por exemplo, a dicotomia «sujeito-objecto»), que não vale a pena aqui analisar.
No que diz respeito à noção de verdade e à sua
relação com o Cristianismo, vale a pena chamar a atenção para alguns aspectos. Um desses aspectos a ter em conta é que
o Cristianismo «lida» com várias noções de verdade, cujas origens linguísticas podem ajudar a perceber do que se trata. Menciono as
duas mais evidentes:
a) A
noção grega de verdade como
o «desvelar» de algo («alétheia»), uma noção recuperada na filosofia contemporânea por Heidegger (inicialmente «alétheia» significava recordação). A verdade como aquilo que se torna patente. A verdade acaba por ser o atributo de uma
operação mental.
b) A
noção bíblica de verdade como «
o que é de fiar» («aman»), ligada às noções de
fidelidade, firmeza e confiança («amen» = verdadeiramente, assim seja). Não se trata de uma operação mental nem de pensar que existe uma «verdade», antes que
as coisas são verdadeiras porque Deus é «o» verdadeiro e n’Ele se pode confiar, não falhou nunca e há a esperança fundada de que não falhará. Isso funda-se numa Aliança de que a Lei é expressão.
É no contexto desta noção bíblica de verdade que Jesus pode dizer «Eu sou a verdade», isto é, a «Nova Lei», a nova Aliança entre Deus e a humanidade. Neste contexto o pecado não é o «erro cognoscitivo» (como o seria num «contexto grego») mas a infidelidade à Lei, à expressão do Amor de Deus para com os homens. É também neste contexto que se entende que Jesus diga: «A verdade vos fará livres». Um grego não podia entender esta frase. «Liberdade» está em oposição a «escravidão» e a referência ao êxodo e subsequente Aliança do Sinai é evidente.
É muito importante ter isto em conta, para evitar algumas confusões e também alguma retórica «oca» que se vê em certos contextos (eclesiásticos, ia a acrescentar). Quando se começa a discutir o tema da verdade e do relativismo,
responde-se com o chavão «Cristo é a verdade», pretendendo com isso acabar a discussão. Ao usar este «chavão» salta-se indevidamente de nível, «ao gosto do freguês». É o perigo de não clarificar convenientemente os pressupostos com que se lida. Na verdade, a maior parte das vezes nem há consciência desses pressupostos. Também por isso é tão importante a filosofia para a discussão teológica.
Ou seja, não se pode responder a uma questão feita ao modo grego com uma resposta de modo semítico sem dar conta da passagem de «paradigma». Suspeito de alguma desonestidade (ou será ingenuidade?) o recurso de uma noção semítica para argumentar com ela como se fosse uma noção «à grega», normalmente para «impor uma verdade». Algo que é alheio ao pensamento bíblico.
Este tipo de discurso que mistura níveis pode ser muito problemático. É uma das justas críticas à
«Fides et Ratio», que «homogeneíza» noções muito díspares de verdade (nisso se vê que não foi escrita pela mesma pessoa).
Obviamente, não tenho uma teoria sobre este tema, mas apetece-me arriscar algumas ideias, que precisam de amadurecer. Uma delas é que
mais do que falarmos do abstracto «verdade», temos que admitir que há realidades verdadeiras e que o seu grau de verdade terá que ser visto em graus e níveis diferentes, não os misturando indiscriminadamente. Assim, não posso considerar como sendo do mesmo nível as seguintes «verdades»:
- Está calor quando escrevo estas linhas;
- A música que oiço é realmente bonita;
- O meu clube de futebol é de longe o melhor;
- O hidrogénio é formado por um electrão de carga negativa e um protão de carga positiva;
- A democracia é o melhor dos sistemas políticos;
- Matar por vingança é crime;
- Matar por vingança é pecado;
- Matar por vingança é mau;
- Morrerei algum dia;
- O sete é um número primo;
- O sete é o número da perfeição;
- É desejável a felicidade;
- Deus ama-me;
- Tenho alguém que me ama;
- Amo alguém;
- Esta mensagem já vai muito longa;
- A verdade é o contrário da mentira.
Não faço mais do que esboçar uma série de problemas…
Imagino que alguém, ao ler a lista de «verdades» que deixei acima comece a tentar classificá-las em «categorias» ou «tipos»... Mas que legitimidade têm tais «categorizações»? Que critérios? Não será um dos nossos problemas precisamente o de passarmos o tempo a espartilhar o que é uno, o ser humano?
Nasce daqui então uma questão importante: não será desejável uma teoria da verdade que salvaguarde a unidade da «verdade» e que inclua quer a noção grega, quer a bíblica, sem as forçar? Não é por falta de uma tal teoria que passamos o tempo a golpear o ar com questões que apenas entretêm, como a das «verdades imutáveis»? Voltamos ao velhinho problema dos pré-socráticos: se algo muda, também permanece... E o que é que permanece?
Voltando ao Cristianismo, é obviamente importantíssima a questão da verdade, com implicações em todos os campos da teologia e da prática religiosa. Deixo algumas dessas questões possíveis:
- Deus revela-Se?
- Como pode Deus – eterno, absoluto – revelar-Se, senão através de «mediações» temporais, culturais (limitadas, portanto)?
- Que significa dizer que Jesus é a revelação final para toda a humanidade?
- Que significado têm as outras religiões?
- Que grau de verdade têm as formulações dogmáticas da nossa fé?
- Que grau de verdade têm as formulações de índole moral por parte do Magistério?
- Que é mutável ou imutável na Liturgia?
- etc., etc…
Outra questão é a do
relativismo. Que significa a tal «ditadura do relativismo»? Há um relativismo «salvável», que não caia no
cepticismo? [É possível um «agnosticismo católico»?]
E, para finalizar: no meio de um «relativismo opinativo», mesmo dentro do Cristianismo, pode haver um critério válido? Se não há qualquer critério, pode-se falar ainda de Cristianismo? Como escapar do «vale tudo»?
Se há critérios, quais são eles?
Repito esta última questão, sob outra forma e proponho que tentemos responder-lhe:
Que critério(s) último(s) de verdade sigo?»
É que é muito fácil dizer que não há verdades imutáveis, etc... Mas isso não sustenta uma vida. Há algo que nos guia. O quê?