Fóruns Paroquias.org
paroquias.org

  A participação no Fórum Paroquias.org está condicionada à aceitação das Regras de Funcionamento.
Inteligência Espiritual
Fóruns Paroquias.org : Geral

 

Ir para tópico de discussão: AnteriorPróximo
Ir para: Lista de fórunsLista de mensagensNovo tópicoPesquisarEntrar
Liturgia pagã
Escrito por: vitor* (IP registado)
Data: 09 de November de 2009 11:19

Recebo todas as semanas um e-mail com a liturgia pagã da semana.
Esta semana fala-se sobre a pobre viúva que dá aquilo que tem e não sómente os restos.
2009.11.08
LITURGIA PAGÃ

Pagão provém do latim pagus = marco de terreno, aldeia,
por oposição à cultura citadina. O radical indo-europeu pak (donde pau) designa a união, estabilidade e a força próprias de Pacto e Paz.
Página também deriva do mesmo étimo, significando originalmente
campo lavrado em esquadria respeitando um marco («pau») bem fixo,
ao que se assemelha uma folha de papel escrita.
Liturgia deriva do grego laos (povo, leigo) e ergon (trabalho),
donde «serviço público».
Liturgia pagã é o esforço de trabalhar com Deus
com a liberdade, consciência e humildade de ser «pagão».

32º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: 1º Livro dos Reis, 17, 10-16
2ª leitura: Carta aos Hebreus, 9, 24-28
Evangelho: S. Marcos, 12, 38-44

A bolsa ou a vida

E é se queremos salvar a vida, por muito reles que esta nos pareça. Vida há só uma, e não há dinheiro que a pague. Assim é que não hesitamos em alargar os cordões à bolsa perante quem nos põe entre a espada e a parede.
A 1ª leitura fala-nos do grande profeta Elias, fugindo da seca com que Israel estava a ser castigado, levando consigo apenas o duro fardo de lutar por descobrir e proclamar o enredo da relação entre os seres humanos e Deus. Cheio de fome e de sede, encontrou uma viúva a quem pediu pão e água. Se esta viúva negasse a Elias o último pedacinho de pão, religiosamente guardado em tempo de cintos bem apertados, acabaria na mesma por morrer de fome e ainda por cima com um peso na consciência. Mas porque confiou num profeta a sério, num homem que não vivia à custa de enganar e roubar, viu melhorar não só a própria situação como a de toda a sociedade, e abriu os olhos para o real valor da sua única vida.
Na verdade, as viúvas da 1ª leitura e do evangelho souberam dar a bolsa para ficarem com muito mais vida!
O problema é saber se podemos confiar em quem se apresenta como «salvador da pátria» ou «salvador das nossas almas». Jesus Cristo utiliza um critério quase infalível: desconfiar de quem gosta de parecer importante, sobretudo se à custa do dinheiro dos outros (evangelho).
As pessoas mesmo importantes sabem pôr o tempo e dinheiro ao serviço do bem comum e, se são mesmo competentes, ganharão a parte devida ao seu contributo para a melhoria geral do nível de vida. Não andam a enganar com boas promessas ou a dizer que são bons porque afinal não roubam tanto como dizem por aí…
Demasiadas vezes, aqueles que mais sofrem com a desorganização social são apenas objecto de palavras bonitas. Quantos, de quem se esperava a sabedoria das palavras que iluminam e aquecem, se preocupam sobretudo com «frases caras» e vistosas, que lhes abrirão as portas da fama! Para não falar dos mistificadores no poder – exemplos, todos eles, da advertência de Jesus: «Tende cuidado com os doutores da Lei, que gostam de se exibir com ricas roupagens e de ser cumprimentados nos mais ilustres centros urbanos, e de ocupar os primeiros lugares nas cerimónias religiosas e civis; devoram as casas das viúvas, a pretexto de longas orações»; e gostam de ostentar grandes esmolas (daquelas que retornam ao bolso dos «benfeitores»...).
Na medida em que a sociedade fecha os olhos ou até promove a desonestidade como estratégia de poder e de riqueza, não são apenas as histórias de viúvas a acabar mal. Além disso, custa fugir à tentação das «luzes da ribalta» e da roda gigantesca do poder (até basta um crime para ter lugar nas caixas altas da imprensa e meios televisivos!). A ênfase que os evangelhos dão às tentações de Jesus testemunha bem a força desta atracção, capaz de rebaixar ou destruir os projectos mais promissores.
Porque a vida é só uma, temos que a saber jogar bem – também Deus nos põe entre a espada e a parede! Jesus Cristo mostrou-se espantosamente consciente de como era importante jogar a sua única vida para bem de todos (2ª leitura). Fez muitíssimo pelo progresso da Humanidade, mas só teve a importância suficiente para ser castigado e executado como perturbador da «ordem da gente que se serve do poder»... Ele próprio se mostrou triste, várias vezes, por verificar que não era compreendido e que até era mal interpretado.
Também por isso, Jesus foi particularmente sensível àquela viúva pobre (evangelho), que passava despercebida, ou que seria ridicularizada por dar esmolas tão pequeninas para o imponente tesouro do templo. Mas Jesus bem a viu, e bem sabia que ela estava a dar esse poucochinho com enorme sacrifício, com um extraordinário e exemplar sentido de responsabilidade na construção do reino de Deus – portanto, com a honestidade e eficiência de quem joga a vida pelo bem de todos, sem hipocrisia e sem esperar reconhecimento público (que será sempre bem-vindo e estimulante, se honesto).
O próprio Jesus Cristo só foi reconhecido muito tempo depois da morte (convenhamos que não é grande consolação! Mas sempre ajuda…). Dá muita força pensar que as nossas acções, por muito pequeninas que pareçam, constituem uma pedra sólida (quem sabe se aquela pedrita que fazia mesmo falta) no grande projecto da humanidade – e que um dia a justiça dará o devido valor a tudo o que parece escondido e a todo o bem feito sem exigir «direitos de autor» (Mateus, 6, 1-8).
Como também dá força a máxima que ainda se ouve a quem sabe olhar perto e longe: «temos que deixar o mundo melhor do que o encontrámos».
Ao dar exemplo do que é dignificar a morte – acto doloroso e solene que põe à prova a fé, a esperança e o sentido da vida – e do que pode significar «amor mais forte do que a morte», Jesus Cristo mostrou como morte e ressurreição fazem parte da vida – essa «coisa» misteriosa que acaba por se libertar da opressão de horizontes tristes, alcançando um «ambiente» onde verdadeiramente somos o que desejamos ser.
Se promovermos a sabedoria de «jogar a vida», podemos gerar filhos corajosos, libertos da vaidade (ou «vanidade», do mesmo radical indo-europeu subjacente a termos como vão, vazio, vago, evanescer…). Com Jesus Cristo, somos observadores das vaidades humanas, sem medo de as identificar e de as procurar corrigir; mas igualmente, e sobretudo, somos observadores da autenticidade e fé humanas, capazes do sacrifício oportuno para accionar honestamente a causa da justiça. No mais profundo sentido, esta última paisagem é deveras revigorante.


MANUEL ALTE DA VEIGA
m.alteveiga@netcabo.pt
Para ler os artigos online e ter acesso à bibliografia básica e curriculum, escreva Liturgia Pagã no motor de busca Google e entre no site Aveiro e Cultura. Pode ainda usar o seguinte endereço:
[www.prof2000.pt]



Editado 1 vezes. Última edição em 09/11/2009 11:19 por vitor*.

Re: Liturgia pagã
Escrito por: vitor* (IP registado)
Data: 13 de November de 2009 15:56

«O dia depois de amanhã»

Só o «amanhã» é que é perto, como que ao alcance da nossa mão. Para o «depois», quase todas as tintas são válidas, embora esteja na moda pintar os cenários mais perturbadores sobre o poder destruidor da violência humana, ou sobre a morte das estrelas, destruição climática, supervulcões e supertsunamis (como no filme que dá o título). Os próprios cientistas afirmam que as catástrofes naturais vêm aí com toda a certeza, só não se sabe quando… Contudo, convém ter presente que o ser humano nunca pára na descoberta de si próprio e do mundo, alterando perspectivas, incluindo as religiosas, e até corrigindo o que parecia certo.
Com esta consciência de que todas as coisas são efémeras, e de que o próprio universo, com a sua estabilidade aparente, está sujeito à destruição, não é de estranhar que se tenha formado a «literatura apocalíptica» (do grego «Apocalipse», «revelação» ou «desvelamento»). Com estilo grandioso e imagens riquíssimas, não alheias à mitologia e simbologia iranianas, é uma literatura presente nas culturas mais diversas, tornando visível a estrutural comunhão entre todo o género humano quanto à interrogação sobre o futuro.
Os textos apocalípticos do judeo-cristianismo (continuados pelo islamismo) centram-se nos temas do Juízo final e da Salvação, e apresentam o Reino de Deus e o Novo Mundo como transfiguração do Universo, onde a própria morte será dominada. Terá pois um final feliz o «combate» entre as forças misteriosas do Bem e do Mal, da Vida e da Morte, apesar de os «filhos da luz» terem que sofrer devido à astúcia dos «filhos das trevas» (na terminologia do próprio Jesus Cristo). E a morte é a passagem não para um estado de vida inferior, mas sim de vida claramente próxima do que podemos entender por Luz, Alegria, Bem-estar.
Há muitos apocalipses, antes e depois de Cristo, todos eles reflectindo a mesma inquietação e esperança. A maioria, contudo, não é aceite como canónica (ou seja, não é representativa ou até está em desacordo com o «núcleo duro» da doutrina em questão).
Ao termo de «apocalíptica» junta-se o de «escatologia» («estudo dos últimos acontecimentos», em grego): traduz, sobretudo, o olhar que o ser humano dirige à sua volta, alcançando o sentido e interesse da consideração da morte e da crença numa vida eterna. Não deve haver hiato entre este futuro e o presente: a crença optimista num «combate escatológico» em que o Bem vence o Mal, dá força para ir travando esse combate no presente. Deste modo, se vai desde já acelerando o «mundo novo», sob a luz da justiça (o «reino» de Deus, como se diz no Pai Nosso).
Com a aproximação do final do ciclo litúrgico, os textos dominicais manifestam cada vez mais pendor apocalíptico e escatológico. Curiosamente, estes «palavrões» tão obscuros designam justamente o fim da obscuridade em que vivemos.
O apogeu da literatura apocalíptica situa-se entre os anos 200 antes de Cristo e 200 depois de Cristo. O Livro de Daniel (1ª leitura) é escrito cerca de 164 a.C, e o evangelho de Marcos (3ª leitura) cerca de 70 d.C..
O Livro de Daniel é a recolha de diferentes tradições orais. Tem muito pouco valor histórico mas é um testemunho valioso do clima apocalíptico da época em que foi escrito – o tempo dos Macabeus. Após a morte de Alexandre Magno em 323 a.C., surge a dinastia selêucida, oriunda do desmembramento do império. Os judeus fiéis passaram a sofrer a imposição da cultura grega, muitas vezes atentatória da religião judaica, e várias perseguições, sobretudo sob o reinado de Antíoco Epifânio.
De acordo com a técnica apocalíptica, este livro pretende ser a obra de um profeta que viveu o Cativeiro de Babilónia (587 a 538 a.C.), grande símbolo do poder das Forças do Mal. Assim, a época crítica do passado surge como «imagem», profecia, lição e consolação para o futuro (a época em que foi realmente escrito).
O texto de hoje pretende infundir coragem naqueles que sofrem pela justiça, apelando para a fé numa vida eterna. A ideia de ressurreição aparece claramente, na linha do sentido etimológico de que não desaparecemos mas voltamos a «surgir» (isto não é especulação, pois traduz uma poderosa, embora difusa, intuição da humanidade; a natural curiosidade de lobrigar o «como» desta nova aventura é que tem muito de especulativo). Sentimo-nos mais em casa, se não deixarmos a morte e a eternidade na rua. Eliminamos assim uma grande parte da nossa angústia, justamente porque a admitimos à nossa mesa, conversando com ela e exigindo-lhe que se porte bem… (Não se aplica neste caso a canção de Coimbra «(…) que a vida de olhos fechados / custa menos a viver»!). É tão bom sentir que o nosso calendário nunca será rasgado de vez, mas que mesmo «depois de amanhã» «os que tiverem levado os outros aos caminhos da justiça brilharão como estrelas com um esplendor eterno»!
O texto do evangelho é que reflecte mais o tradicional estilo apocalíptico (mas as suas imagens e conceitos devem muito ao Livro de Daniel). Jesus fala de si como «o Filho do homem vindo com as nuvens, com grande poder e glória», «para reunir os seus eleitos dos quatro cantos da terra».
(As «nuvens» tanto podem ser tenebrosas, como um véu diáfano que protege do ardor do sol e do encandeamento da luz forte. Simbolizam os paradoxos de Deus, juntando distância e proximidade. Assim, no Dia de Javé, as nuvens claras arrebatarão os crentes para os levarem ao encontro do Senhor que vem).
O sentido de «Filho do homem» continua a dar dores de cabeça aos especialistas e aguça a «curiosidade apocalíptica» de toda a gente. A expressão é frequente em Daniel e nos apócrifos, e no Livro dos Actos (7,56) lemos que Santo Estêvão, martirizado pelo fanatismo de alguns judeus (entre eles Paulo de Tarso,o futuro S. Paulo) vê «o Filho do Homem de pé à direita de Deus». Mas nunca mais foi usado no Novo Testamento. É formidável, contudo, a ideia de colocar um representante do género humano ao lado do «grande Juiz».
Podemos dizer que Jesus utiliza «filho do homem» como expressão que tanto sugere como esconde a origem divina da sua missão.
De acordo com o aramaico, seria até mais exacto «filho de homem», com o sentido de pertencer à espécie humana. Ao longo da Bíblia, é frequente a admiração de como o ser humano, um ser tão fraco, é de tal modo amado por Deus e eleito por Ele como rei de toda a criação. Assim reza o salmo 8, 5: «Que é o homem para que dele te recordes, o filho de homem para que dele tenhas cuidado? Quase fizeste dele um ser divino, de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés».
(Digam lá que não é mesmo bom ouvir coisas tão bonitas a nosso respeito!)
Mas Jesus terá aproximado intencionalmente a ideia de um ser fraco, sujeito ao sofrimento e à morte, ao célebre conceito de «servo de Javé».
A 2ª leitura coloca Jesus Cristo no centro do pensamento apocalíptico. Em Jesus, é palpável a vastidão do drama do ser humano, onde o próprio Deus entra nas intrigas. A «ressurreição» mostra que Jesus não ficou prisioneiro da história, muito pelo contrário, e sublinha fortemente que a pessoa não pode existir para ser reduzida ao nada. Até os momentos mais negativos da vida deixam de ser tara perdida.
O cristianismo, descobrindo em Jesus o «filho de homem» que é «filho de Deus» (tão intensamente que O trata por «Pai»), põe de lado os medos e a falta de ânimo para lutar pelo Bem, sobretudo quando o Mal parece avassalador. Na sua vida, Jesus mostrou muitos momentos de angústia, mas não deixou de ser o mais agradável dos amigos e o mais seguro de que Deus dá sentido total ao drama da humanidade, dando valor e unidade aos dias de ontem e de hoje, de amanhã e de «depois de amanhã».


MANUEL ALTE DA VEIGA

Re: Liturgia pagã
Escrito por: vitor* (IP registado)
Data: 26 de November de 2009 18:50

Já um cheirinho a Natal


Nos antigos natais da aldeia, este domingo trazia o primeiro cheirinho a Natal, feito de castanhas e de vaga inquietação por onde buscar o melhor musgo, por qual o canto mais lindo para o presépio e por onde param e como estarão as figurinhas e outros adereços – tudo isto no embalo das palavras misteriosas da liturgia em latim. Até nem se reparava no estilo duro e apocalíptico do Evangelho, adormecendo no conforto da Leitura de Jeremias! A própria carta de S. Paulo, que nos exorta à firmeza no progresso do amor e de outras virtudes, mais parecia uma coroa de flores a oferecer ao «rebento justo», ao «Menino Jesus».
E contudo, a passagem do evangelho de hoje marca o final do ministério de Jesus em Jerusalém, sendo imediatamente seguido pelo relato da Paixão. O «Menino Jesus» exprime a fraqueza própria do «filho de homem» (imagem muito presente nos domingos anteriores) – mas também o lado paradoxal da mesma expressão: o poder e a glória do autêntico «justiceiro», que virá sobre as nuvens impenetráveis ao nosso conhecimento e compreensivelmente temerosas para toda a humanidade. Por isso exclamava Simeão, ao pegar ao colo em Jesus recém-nascido (Lucas, 2, 29-35): «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição». O encontro definitivo com ele não nos pode apanhar desprevenidos: temos que o saber esperar «de pé como as árvores» carregadas de bom fruto.
Há pois que «desconfiar» da inocência e graça do «Menino Jesus»… Ele não é o boneco lindinho à venda nas feiras, nem sequer um daqueles bebés lindos a valer, que quase se confundem com o colo da mãe, se possível ainda mais linda. Iremos nós ao encontro do «Menino a sério», como os «Reis Magos»? E saberemos tirar proveito desse encontro, como o fazia a «Mãe a sério» do «Menino a sério» – guardando todos estes estranhos acontecimentos «no seu coração», para reflectir calmamente sobre o que poderiam significar? (Lucas, 2, 51; 1, 29). Ou acharemos mais cómodo e prudente matar o menino, como quis o rei Herodes – «o tal (no dizer de Miguel Torga) que não gostava de crianças»?
A primeira leitura não é original de Jeremias mas de um discípulo. Trata-se de um cântico tipicamente messiânico, presente noutros lugares dos livros do Antigo Testamento, prometendo ao povo de Israel que Deus fará nascer um «rebento de justiça» para o dirigir com rectidão. Na perspectiva religiosa desta época (destruição de Jerusalém pelo império babilónico, em 587, e subsequente cativeiro), o Messias (rei-sacerdote) nasceria da seiva de David, cabendo-lhe juntar o direito e a justiça. Dentro dos parâmetros da cultura do tempo, o Direito legitima a imposição da autoridade e do julgamento. Mas precisa da Justiça para que não se exerça o poder arbitrariamente, oprimindo os que menos se podem proteger.
No Antigo Testamento, a Justiça é um grande atributo de Deus. O termo hebraico original é de difícil tradução, pois refere sobretudo a situação concreta de alguém que vê reconhecida a sua inocência ou satisfeita a sua pretensão. Interessa é ter a lei a seu favor – o que pode dar lugar a falsidade e corrupção. Como transpor este conceito para Deus?
As orações pedem a ajuda de Deus «porque Ele é justo»: «Escuta-me, ó Deus, minha justiça! Tu, que me libertaste na angústia» (salmo 4,2); ou ainda, entre muitos outros exemplos: «Salva-me, ó meu Deus! Bate na face dos meus inimigos. De ti, Senhor, vem a salvação» (salmo 3,8-9). Pedimos a Deus que nos dê razão, porque nos cremos na razão. Mas porque Deus vê claramente no fundo do coração, reza assim o salmo 50: «Ó Deus, meu salvador! Lava-me de toda a iniquidade. Reconheço as minhas culpas» (50,16.4.5). A justiça exige reconhecer o mal como mal, e o bem como bem.
Falar de Deus como justo é portanto a percepção do conceito essencial de Deus como «salvador» – a par da percepção que o ser humano tem de si próprio como incapaz de dar resposta a todos os desejos e necessidades, impotente para garantir a própria felicidade. Porém, a consciência das nossas limitações e falhas seria dificilmente explicável se não tivéssemos o vislumbre de alguém sem falhas nem limitações. Ter fé é ter confiança neste «alguém» – o que, na vida real, é ter esperança em Deus, mesmo quando só apetece desesperar (Romanos,4,18). E porque a Justiça é perfeita em Deus, pode e deve ser o critério para matar «a fome e sede de justiça» de que falam as bem-aventuranças.
A seu tempo, o Cristianismo verá, na leitura de Jeremias, o prenúncio de Jesus bem adulto pregando o Amor como fundamento do Direito e da Justiça.
A vinda de Jesus deu-se discretamente. Deus dá a impressão de querer “meter-se connosco” de mansinho, para não nos assustar. Não há nuvens nem imagens apocalípticas. Todos os olhos podem ver com alegria tranquila um menino a nascer.
Mas à medida que esse menino for crescendo, «ganhando força e sabedoria» (Lucas, 2, 40), crescerão as nuvens por todos os lados: progressivamente, tanto Jesus como os que o rodeiam, ir-se-ão dando conta da dimensão transcendente do «filho do homem», que chega a parecer aterradora. O próprio Jesus, mesmo antes de ser preso, pediu ao Pai para «afastar o cálice» do sofrimento e da morte iminente. Mostrou-se, porém, fiel ao compromisso da vida «até às últimas consequências», e por isso mereceu partilhar da plenitude de Deus. É com esta autoridade suprema que se manifestará «no fim dos tempos», e a verdade da vida aparecerá tão intensa que os seres humanos ficarão atónitos. Aqueles, porém, que seguiram os caminhos de Cristo, sempre vigilantes, «levantarão a cabeça» e permanecerão de pé a seu lado – são os que procuraram, como ele, tanto nos maus como nos bons momentos, tanto ao sentir mais vida como ao sentir mais morte, mostrar que valeu a pena, para toda a humanidade, a estranhíssima aventura de terem vindo a este mundo, do mesmo modo que veio o bebé Jesus.
Segundo vários especialistas, a seguir ao texto atemorizante do evangelho de hoje é que faria sentido colocar o episódio da «mulher adúltera» relatado por João (8, 1-11): Quando os escribas e fariseus perguntam a opinião de Jesus sobre o que fazer à mulher surpreendida em adultério, ouviram o que não queriam – «quem de vós estiver sem pecado lance-lhe a primeira pedra». Jesus não condenou a mulher. Condenar é um juízo sem amor, e o mais importante é suscitar em si e nos outros a coragem para procurar «os caminhos de Deus», como fizeram os Reis Magos.
Os semi-lendários «reis magos», símbolo da diversidade humana ou das fases da vida humana (juventude, maturidade e velhice) não ficaram parados a olhar para a estrela do mistério: tiveram a coragem de se lançar de corpo e alma na transcendência e exigência do caminho que se ia desvelando passo a passo, vencendo os obstáculos sem perder tempo com desculpas nem jogos diplomáticos. A tradição viu neles o exemplo da perseverança e do reconhecimento que a justeza das decisões humanas é mais garantida quando nos orientamos por um ideal que não pode ser corrompido.



Desculpe, apenas utilizadores registados podem escrever mensagens neste fórum.
Por favor, introduza a sua identificação no Fórum aqui.
Se ainda não se registou, visite a página de Registo.

Nota: As participações do Fórum de Discussão são da exclusiva responsabilidade dos seus autores, pelo que o Paroquias.org não se responsabiliza pelo seu conteúdo, nem por este estar ou não de acordo com a Doutrina e Tradição da Igreja Católica.