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B. LIBANIO, JESUÍTA
Natal
Não agüentamos Natal tão simples. Fica a lição tão dura. Deus anda pelos subúrbios. Pede pousada e não encontra. Nasce fora de casa, sem teto
J. B. LIBANIO, JESUÍTA
Natal fere-nos pela força paradoxal. Festa alguma carregase de tanta beleza, sensibilidade e simplicidade franciscana. Tudo nos fala aos sentidos. Desde as cores verde ou branca, conforme o hemisfério, até os sons universais de ternura e delicadeza. "Noite Feliz" soa em ambientes bem diversos. Lado humano, de que a sociedade se apropria ao retirá-lo do recinto estritamente cristão. Natal pertence à humanidade, cristã ou não, com fé ou sem fé. Natal faz parte do patrimônio cultural universal.
O rito, o mito fundam-se, embora, às vezes, longinquamente, na realidade. Não perdem nunca totalmente a raiz da experiência humana, situada, histórica. No Natal, a relação entre rito e fato, entre mito e história, adquire caráter singular. O rito e o mito embelezam, enternecem, colorem realidade dura e misteriosa do primeiro natal da história.
Lá na origem está um casal de migrante. Quem diria? Ele, camponês no dia-a-dia e artesão nas horas vagas, ela, mãe e esposa pobre, presa à rotina do cotidiano. Nada mais. Na narração evangélica, ambos partem para o desconhecido em situação difícil. Ela, grávida de nove meses, enfrenta longa viagem. Um toque de imaginação a vê chegar a Belém, prestes a dar à luz, carregando dentro o peso do filho. Preocupação, angústia ao lado de confiança nAquele que a habitou. Batem à porta de hospedarias, continua Lucas. Os dois recebem um não. Até aí nada de especial. Hoje vivemos cada dia experiências semelhantes em Belo Horizonte. Quantos e quantas tocam campainha à espera de alguma ajuda, sem nunca ousarem pedir alojamento, e recebem um não eletrônico do interfone. Nem mesmo a negativa de um rosto humano. Tudo permanece na frieza do tecnológico.
Mas lá, voltemos, não eram simplesmente dois pobres a pedir abrigo. Escondia-se no ventre da mulher o mistério infinito de Deus. Ele não escolheu nenhum palácio mundano ou eclesiástico, bem preparado, lindamente ornado com flores, sons, cores e calor. Entra sorrateiramente sem que nenhuma autoridade de Roma ou Atenas, de Jerusalém ou Belém tivesse a mínima idéia de que Deus visitava a Terra. De porta em porta, Ele buscou um abrigo entre os humanos. E o não soou como resposta da humanidade à proposta de Deus. A humanidade, o povo de Israel, os habitantes de Belém faziam parte da família que escolhera. "Ele veio para o que era seu, mas os seus não o acolheram" (Jo 1, 11). Sendo luz, "as trevas não conseguiram abarcá- la" (Jo 1, 5).
Natal significa, então, algo bem diferente. A vinda de Deus a nós no escondimento, no silêncio, no nãoreconhecimento. Não inicia a carreira humana de cima, embora fosse o Verbo divino, mas de baixo. Só se começa realmente a pensar em Jesus desde os pobres, os marginalizados. Na verdade, não agüentamos Natal tão simples, despojado. Já o Novo Testamento povoou-o de anjos celestes, já que os terrestres se reduziram a um casal e a alguns pastores bem pobres.
Fica a lição tão dura para a sociedade do capital, do mercado, do desperdício, do lucro, do consumo, da exterioridade, da pompa. Deus anda pelos subúrbios. Pede pousada e não encontra. Nasce fora de casa, sem teto. Contenta-se com o habitat dos animais. E se olharmos para a suntuosidade das catedrais, dos palácios pontifícios, de tudo que se construiu em seu nome, espantanos o choque de realidades, para não dizer mais.
Natal segue paradoxal. Fala do grande e do pequeno, da festa e do silêncio, do sensível e do mistério, do universal e do pequeno particular, do Jesus de Belém e do Cristo das glórias. Que um pólo não silencie o outro. Que ambos nos aproximem da realidade natalina. Os mistérios maiores não permitem que lhes amputemos a beleza da completude.
Teólogo, escritor e professor, o padre João Batista Libanio escreve neste espaço aos domingos.
Publicado em: 23/12/2007