Gostaria de chamar a atenção para um tópico algo esquecido, já no «Arquivo»:
«O futuro da Igreja e a Igreja do Futuro».
A razão é simples:
que queremos dizer quando dizemos que há ou não uma crise na Igreja? Como se mede?
Que significa, a haver, tal crise? Podemos, certamente, fazer um bom
diagnóstico da situação -- e ele é importante --, mas
mal seria se nos ficássemos por uma atitude defensiva e utópica do «ó tempo, volta p'ra trás», do sonho do regresso à Cristandade. Queiramos ou não, não voltaremos à Igreja da «Cristandade» (o citado tópico sobre o futuro da Igreja é interessante para ver isto). Portanto, será conveniente ter em mente: feito o diagnóstico,
a que nos desafia esta crise, se ela existe?
Se tomarmos por analogia
o crescimento de uma pessoa, veremos que toda a pessoa passa por algum momento de crise, desde o nascimento (que é também um momento de crise para o «modelo da vida intra-uterina»). Mas será toda a crise necessariamente negativa?
Há ou não crises de crescimento?
Analogamente, queiramos ou não,
o modelo de Igreja a que nos habituámos durante décadas, nomeadamente no que diz respeito à presença e papel do clero e dos leigos, sofreu um enorme abanão e a consequente mudança será sentida cada vez mais.
Por exemplo, no caso da
falta de padres, ela vai acentuar-se ainda mais. Há umas semanas lia na revista
«Vida Nueva» umas notícias impressionantes a propósito do País Basco. Veja-se
aqui um resumo. Alguns dados impressionantes, comparando 1966 e 2008:
- San Sebastián tinha
453 seminaristas; agora tem
0 (
zero)!
- em Bilbao havia
537 seminaristas; agora há
3 (três);
- em Vitoria havia
403 seminaristas; agora há
1 (um).
Ou seja, o País Basco tinha em 1966 um total de
1393 seminaristas e em 2008 tem
quatro seminaristas. E a população aumentou e muito.
A notícia em questão (na verdade é um dossiê) atribui uma grande parte deste descalabro a razões políticas, mas
muitas outras razões estão presentes.
Parece que se pode dizer que o tempo pós-Conciliar foi bastante
traumático no que diz respeito ao clero e aos consagrados. Não apenas houve uma baixa brutal no número de
candidatos, como foram muitíssimas as
saídas. Se bem me lembro, calcula-se que desde o final do Concílio
150.000 padres deixaram o exercício do seu ministério e muitos institutos religiosos
perderam entre 40 e 60% dos seus efectivos. Sendo o panorama português dos menos graves, veja-se que hoje os párocos têm cada vez mais paróquias e a média de idades é cada vez mais avançada. Com mais trabalho e mais idade também os seus serviços vão sendo mais fragmentários. Muitos passam uma vida de correria, o que não ajuda muito para uma vida espiritualmente sadia e fecunda.
Enquanto isso, a resposta da
hierarquia nem sempre prima pela rapidez, embora se percebam as dificuldades. A
ordenação de padres casados pode estar no horizonte, mas não será para breve; a
ordenação das mulheres está oficialmente fora de discussão; os
leigos não podem substituir os padres em várias funções e em muitos sítios os
padres não confiam nos leigos.
Mas esta crise atingiu um pouco toda a gente. O Camilo lembrava e com razão que, se tomarmos como critério de prática do catolicismo a participação na Eucaristia dominical, temos talvez uns
20% de católicos praticantes e desses apenas
uma minoria recorre, por exemplo, ao sacramento da Reconciliação. E começa a ser difícil encontrar padres dispostos a confessar, em boa parte pela vida agitada que levam. E tudo isto,
apesar de um enorme esforço, já desde os anos 70 do século passado de muita divulgação e formação católica (por exemplo, é impressionante a quantidade de livros de divulgação bíblica, sobretudo se compararmos com os anos 60 ou 50).
Bem, mesmo escrevendo à pressa, há que dizer de passagem que também há
muita coisa positiva que importa realçar. Hoje ser católico (praticante, claro) significa uma
opção de coragem e muitos são os católicos que vivem a sua fé com um enorme sentido de responsabilidade, participação e integração espiritual. Em muitos lados (menos em Portugal…) há
grupos de oração, grupos bíblicos, etc. Há movimentos laicais muito dinâmicos, que desenvolvem os mais variados tipos de trabalho, quer no
campo social quer no campo da
formação religiosa.
Tudo isto significa uma grande
mudança, que tem os seus
custos. Por exemplo, as muitas possibilidades dadas às raparigas de hoje de viverem uma vida de entrega pelo Reino de Deus sem ter que passar pelas estruturas apertadas dos Institutos religiosos faz com que
a vida religiosa feminina tenha sofrido uma hecatombe em termos de vocações. Muitas preferem participar em
movimentos de voluntariado durante uns anos ou fazer parte de
Institutos Seculares.
Tudo isto está possivelmente a permitir à Igreja uma imagem mais humilde (sal, fermento...) e menos triunfalista...
Enfim, postais da «crise» ou da mudança…
Como quer que seja, creio que
não vale de nada lamuriar-nos, ou chorar sobre o leite derramado. Possivelmente
a crise é também uma oportunidade, como indica a feliz ambivalência chinesa do termo. Acreditamos que
o Espírito Santo não abandonou a sua Igreja e cabe-nos procurar discernir aquilo que «o Espírito diz às Igrejas».
A Igreja tem tido uma capacidade extraordinária de sobrevivência às piores crises, de todo o tipo, e esta também não será a última crise.
Com isto não quero, de modo nenhum, «matar» o tópico, como se significasse isso que os diagnósticos não valem nada. Evidentemente, são necessários. Mas,
se tivermos em conta o «futuro» que nos espera, mais livres estaremos para fazer um diagnóstico de que possamos realmente tirar proveito.
O Camilo já apontou um factor importante da crise e espero que o desenvolva, como lhe pedi. Há, de facto, um elemento fundamental que a Europa experimenta há muito tempo: a
crescente secularização, que atingiu não apenas os Católicos, mas também os Protestantes (talvez ainda mais). Creio que no caso da Igreja Católica há outro elemento ligado a este:
o fim de certas estruturas mais ou menos rígidas pôs mais a descoberto a crise de espiritualidade. Quando os serões não eram inteiramente ocupados pela televisão ou pela Internet era mais fácil garantir a oração diária; os padres estavam entre as pessoas mais instruídas e gozavam de prestígio social; havia uma mentalidade envolvente de luta por «valores fortes». Mas, queiramos ou não, a fragmentariedade, o fim dos «grandes relatos», a correria e cultura do instante própria da pós-modernidade, está aí.
E perante isto não podemos continuar a falar como se estivéssemos diante de uma Igreja de Cristandade.
O Evangelho é válido para todas as culturas e tempos, pelo que o que há que encontrar são as linguagens apropriadas que mostrem que ele continua a ser uma proposta exigente e, contudo, um caminho seguro de felicidade. Mas há um trabalho muito para lá das linguagens.
A superação da crise e a grande mudança na Igreja dar-se-á pelo interior de nós mesmos. Não podemos vencer a crise sem uma aposta clara por uma via fortemente espiritual, a começar pela oração.
Volto a recomendar a leitura do tópico
«O futuro da Igreja e a Igreja do Futuro».
Alef