Está aqui a entrevista ao padre Jacques Arnould de que a Lena falou nos posts atrás. É um texto extenso, mas na eventualidade do link poder ser desactivado, aí vai.
Do
Público:
Nunca conseguiremos provar se Deus existe
16.03.2008
Padre dominicano, o francês Jacques Arnould trabalha desde 2001 no Centro Nacional de Estudos Espaciais. Diz que é preciso que as religiões não tenham medo da ciência mas que mantenham o espírito crítico para com o trabalho científico. E não tem dúvidas em dizer que nunca se demonstrará se Deus existe ou não. António Marujo (entrevista) Gonçalo Português (fotos)
Voltar a misturar teologia e ciência seria "um erro grave", afirma o padre dominicano Jacques Arnould. Membro da Ordem dos Pregadores (frades dominicanos), Arnould, de 46 anos, foi convidado da Semana de Estudos Teológicos da Universidade Católica, onde proferiu duas conferências, sobre a teologia depois de Darwin, o criacionismo e o inteligent design. Em entrevista ao P2, falou do encontro do Papa com os antigos alunos - cujas actas estão publicadas em Criação e Evolução, ed. Univ. Católica -, visto por alguns como uma tentativa de reabilitar o criacionismo.
Trabalha no Centro Nacional de Estudos Espaciais [CNES] francês. Espera que nas viagens espaciais se encontre Deus?
Não sei se poderemos descobrir Deus nas viagens espaciais. Não sei onde está Deus. Mas os que estão empenhados na conquista espacial não afastaram Deus do seu empreendimento. Gagarin [primeiro astronauta soviético], quando regressou do seu primeiro voo e lhe perguntaram se vira Deus, respondeu: "Não, não vi." Mas há muitos outros testemunhos de astronautas e outras pessoas que não hesitaram em colocar Deus e o religioso nas actividades espaciais. Os astronautas americanos que leram a Bíblia à volta da Lua, as tripulações que são abençoadas por padres ortodoxos na Rússia...
E se um dia descobrirmos outra civilização, num planeta diferente, esses seres podem também acreditar em Deus?
Ninguém sabe. A questão não será tanto o que eles pensam, mas como reagiremos nós. Há muito tempo que nos preparamos, pela imaginação, para um tal encontro - mesmo se não sabemos se ele terá lugar, nem quando. De um ponto de vista científico, isso seria um acontecimento extraordinário.
A Igreja trabalha há muito tempo [sobre isto]. É uma velha questão filosófica e também teológica. No século XIII houve um debate em Paris, sobre se podia haver outros mundos. A resposta foi: não é a nós que compete restringir a capacidade criadora de Deus. Se ele queria criar outros mundos habitados, outros seres, quem o pode impedir?
Seria o mesmo Deus?
Do ponto de vista cristão, sim. As pessoas podem ficar decepcionadas porque querem respostas mais definitivas, mas não é a nós que compete limitar a capacidade criadora de Deus. Deixemos Deus desenvencilhar-se com esses seres, se ele quis um dia criá-los. A nós, cabe acolher a novidade e a diferença.
Criacionismo avança
Qual é o seu trabalho nas questões éticas e culturais da investigação espacial?
O CNES é uma das raras agências espaciais que instituiu um interesse pela dimensão ética. A Agência Espacial Europeia fê-lo, mas centrada no aspecto jurídico. O meu trabalho é simples: em todas as ocasiões possíveis, introduzo a questão filosófica das consequências de dada actividade: reflexão com os astronautas, protecção planetária (por exemplo, não poluir Marte quando vamos explorar o planeta).
É um preocupação ecológica de âmbito alargado?
Sim. Ao vermos a Terra a partir do espaço, isso pode permitir olhá-la de outro modo, aprender no espaço o que se pode aplicar à Terra: a maneira de considerar o planeta, o estatuto jurídico do espaço como património comum da humanidade.
Os criacionistas estão a ganhar terreno na Europa?
Sim. Estou espantado, porque a primeira vez que ouvi falar de criacionistas foi há dez anos, mas nessa altura o fenómeno estava reduzido aos Estados Unidos e ao mundo anglo-saxónico. Nestes dez anos, sob formas novas, em particular com o que se designa o design inteligente, tornou-se mais importante no meio cristão. No meio muçulmano, também há uma pressão criacionista - mesmo em países como a França ou a Bélgica.
Isto cria um problema científico, político (por causa do modo de ensinar hoje as ciências - não estivemos muito atentos à dificuldade de ensinar a evolução biológica na escola) e religioso, porque se trata de uma reivindicação religiosa.
No discurso que motivou o cancelamento da ida do Papa à Universidade La Sapienza, Ratzinger dizia que havia uma crise de fé na religião, mas também na ciência. É isso que leva ao sucesso do criacionismo?
Estamos em sociedades, pelo menos na Europa, que estão em crise de sentido, dos valores, da referência para as escolhas de sociedade. Alguns cientistas ateus reconhecem que a ciência negou os valores religiosos e filosóficos sem os substituir. Não é o desencantamento do mundo, como alguns dizem, mas uma crise de valores.
As pessoas procuram coisas relativamente simples. Será que falhámos o ensino da evolução? Não. Mas um discurso simplista como o criacionista tem resultados.
Um erro grave
E as pessoas sentem que a ciência não pode resolver tudo?
Sim. Mas não devemos dizer que, como a ciência não fez, a religião fará. Pretender que o outro seja fraco para que nós possamos dar a solução seria um erro. Cada um - a ciência ou as religiões - deve contribuir com as suas riquezas. Mas isso precisa de um espírito de abertura e não de integrismo - nem científico nem religioso.
Afirmou que a Reforma protestante aproximou as pessoas do texto bíblico. A Reforma é culpada do criacionismo actual?
Não! O criacionismo actual é uma reacção à revolução de Darwin, através de uma leitura literal da Bíblia, sobretudo em pequenas igrejas protestantes dos Estados Unidos. Os criacionistas recorreram ao literalismo, o que conforta as suas posições. A culpa não é de Lutero, isso seria redutor. O literalismo existe também no catolicismo.
A Igreja Católica chegou a condenar o evolucionismo. O Papa esteve há ano e meio a discutir o tema e muitos pensaram que isso seria reabilitar o criacionismo.
Não é o caso, pelo menos por agora, O que diz o cardeal [Cristoph] Schonborn [de Viena] só o compromete a ele. Que alguns se tenham reconhecido nessa visão, é uma coisa. Que Bento XVI assine o que ele disse, é outra. Se fosse o caso, pessoalmente teria muita pena. Seria um grave erro misturar questões científicas e teológicas. Mas não tenho nenhuma razão para pensar que tal venha a acontecer.
O que ele dizia no artigo do New York Times, de Julho de 2005, são afirmações muito sectárias, que acusam em primeiro lugar a ciência. Eu mesmo fiquei muito chocado com o artigo. Os partidários do design inteligente não são necessariamente aliados do cristianismo.
O design inteligente é um novo criacionismo?
Não está, pelo menos, muito longe dele. E se é um pouco diferente, passa pela mesma confusão. Hoje, é necessário trabalhar uma verdadeira teologia natural. O design inteligente não é uma teologia natural, porque coloca a priori o que quer encontrar. A procura cristã é muito mais inteligente que o design inteligente
A Igreja teve no padre Teilhard de Chardin um grande geólogo e paleontólogo, que começou por ser condenado. Ele é uma referência para si?
O que vejo interessante nele, tanto como as ideias, é o método da sua busca, a sua atitude humana e inteligente para com a ciência. Em 50 anos, a ciência fez muitos progressos. Ele morreu em 1955, há coisas ultrapassadas. Quando acabei de escrever um livro sobre ele, dei-me conta que encontrei sobretudo um grande irmão. É comovente saber que não somos os primeiros, que não estamos sozinhos...
Teólogos e cientistas devem afrontar o criacionismo juntos?
Isso já acontece. Não é necessária propriamente uma aliança contra quem quer que seja, mas sim ter menos medo da ciência. A atitude de João Paulo II, de repetir "não tenham medo" da ciência, era emblemática: não ter medo da ciência, sem se deixar dominar por ela, ter um espírito crítico para com a ciência, não decidir o que é bom ou mau na ciência - isso pertence aos cientistas -, ser crítico do uso que dela fazemos, ter consciência de que a ciência não pode dizer tudo sobre o homem e que nós também temos algo de essencial a dizer sobre o humano, promover tudo o que permite o diálogo com a ciência.
A Academia Pontifícia das Ciências é, a esse nível, um lugar importante. É preciso promover o trabalho teológico, tendo em conta o que diz a ciência, porque a humanidade à qual me dirijo está marcada por uma dimensão científica.
A fé e o problema do mal
Referiu na sua conferência a questão da selecção natural: como é possível Deus ter criado algo que não é perfeito e acaba?
Para mim permanece um problema. Estamos em Lisboa, onde ocorreu o terramoto [de 1755], que é um objecto filosófico largamente discutido. Infelizmente não é o único, porque há muitas outras catástrofes, mesmo próximas de nós, que suscitam a pergunta: porque está este mundo marcado pelo mal físico, pelo sofrimento, pelo mal moral? A presença do mal toca-nos a todos e é insuportável.
Não tenho respostas. Há uma grande diferença entre a procura da fé e a da ciência. A ciência procura saber mais, mesmo sobre as imperfeições do mundo. A fé existe apesar da ignorância ou do medo que tenho. É isso que é humano, terrivelmente humano.
Respeito os que dizem que não podem acreditar num Deus que deixa que aconteça o terramoto de 1755 ou o tsunami de 2004 - os dois são comparáveis pelo choque que provocaram. Mas também quem, apesar disso, acredita em Deus. Bem, será preciso depois que Deus nos explique estas coisas...
A fé é isso: apesar de tudo o que nos impede de dar um passo - em primeiro lugar, da minha própria imperfeição e apesar do mal do mundo - damos esse passo.
Assegurando sempre a autonomia das ciências?
Sim. A questão colocou-se quando as autoridades religiosas quiseram intervir, como no caso Galileu, de forma caricatural: não é à Igreja que compete dizer que a Terra está no centro do Universo. Podemos interrogar-nos sobre as ideologias subjacentes a determinadas teorias científicas, porque os cientistas são homens e os seus trabalhos são orientados pelos seus a priori sobre o mundo. Autonomia, sim, mas não chega dizer que a ciência é neutra. Quando ouço que nos comités de ética não deve haver pessoas das religiões, compreendo de onde vem essa posição, mas a dimensão religiosa existe e tem lugar no debate sobre o uso das técnicas e das ciências.
Há dias, surgiu a notícia de que um grupo de cientistas ia tentar descobrir porque as pessoas acreditam em Deus. É possível?
Já houve trabalhos desse género, a tentar descobrir onde é que Deus se encontra no cérebro. O que podemos demonstrar? Quando se acredita em Deus, isso diz respeito a todo o ser humano. Não se acredita em Deus por causa de uma pequena parte do nosso cérebro, do nosso coração, das nossas entranhas. Essa é uma busca globalmente humana. Podemos medir mudanças de hormonas quando se está a rezar ou quando se medita. Mas o que demonstrámos com isso? Nada de novo. Apenas que a busca religiosa é profundamente humana. Avançou-se no conhecimento do humano, mas não se demonstrou nunca a existência ou inexistência de Deus. Nunca o conseguiremos provar.