Cara catolicapraticante:
Bolas, ou tu tens «fraca pontaria», ou gostas de me contradizer ;-) ou tens/tenho azar... É que, aqui ou num dos teus blogues, quando fazes alguma citação do «De Rerum Natura» em temas relacionados com a fé, quase sempre escolhes os piores momentos ou, pelo menos, as frases com as quais estou em maior desacordo. O exemplo do
«camandro» é outro caso significativo (delirante, até), que me surpreendeu pela «ingenuidade» do autor do dito texto.
No que diz respeito ao texto que agora citas, é claro que, na «lógica» do Desidério e de certa filosofia, o conhecimento se reduz àquilo de que temos provas «científicas». Um falso pressuposto, bastante fácil de desmontar.
Acontece que ele usa mal (como lhe mostrei) a alegada corroboração de S. Tomás. Todos os comentadores que conheço de S. Tomás (e tenho várias indicações bibliográficas sobre o assunto) falam da fé em S. Tomás como conhecimento. É um conhecimento diferente do conhecimento científico, mas é conhecimento. Conhecemos muito para lá do que é estrito conhecimento científico ou do que temos provas «científicas».
De resto, para tratar do tema da fé não nos podemos cingir a S. Tomás e, falando de S. Tomás, há que dizer o que entende S. Tomás pela fé. Aqui o Desidério comete os dois erros possíveis: cinge-se a S. Tomás e acaba por não dizer o que é que S. Tomás entende por fé. E depois, na minha opinião, comete um erro garrafal quando fala do fideísmo.
Se a fé é uma experiência humana de um âmbito próximo ao do amor, talvez a análise desta mesma experiência ajude. O amor não se prova cientificamente nem se reduz a proposições, mas quem ama tem um tipo de experiência que também comporta um tipo de conhecimento. Conhecimento que vai para lá do «proposicional». Basta pensar que «amo-te» não é uma mera proposição e que «receber» tal frase não se reduz a receber uma «informação». E num momento em que se fala tanto de tipos de inteligência, emoções (por exemplo, no contexto das ciências
cognitivas[«cognitivo» diz respeito ao conhecimento, como sabemos!]), etc., parece evidente que é necessário «alargar» um pouco mais o que se entende por conhecimento. Melhor, não se trata de «alargar», mas de «não encolher». Quem ama e tem emoções tem um certo tipo de conhecimento, irredutível ao conhecimento científico, mas que também é conhecimento.
Pensemos noutro caso: a experiência de confiar em alguém ou de acreditar em alguém (por exemplo, que uma declaração de amor é verdadeira). Não nos dá propriamente um conhecimento científico, mas há algo que conhecemos nestes actos. O conhecimento não é um âmbito separado do resto da nossa vida! Andamos a falar na necessidade de vencer os dualismos e depois caímos em velhos erros tão grosseiros nas coisas mais elementares?
Ora, sendo a fé não apenas um assentimento de verdades não provadas cientificamente, mas também uma relação de confiança com alguém (é uma entrega a alguém), então parece evidente que a fé também se reveste de uma forma de conhecimento.
No meu comentário ao texto publicado pelo Desidério citei um texto da
Summa de S. Tomás que diz:
Citação:«À segunda [objecção] é necessário dizer que no Símbolo [dos Apóstolos, isto é, o Credo] se propõem verdades da fé enquanto termo (fim) do acto do crente. Mas este acto do crente termina não no enunciado, mas na realidade que contém. Na verdade, não formamos enunciados senão para alcançar o conhecimento das realidades; como se passa na ciência assim também na fé» (II-II q. 1 a. 2 ad 2).
É um texto eloquente e não único. Como expliquei logo depois, com este texto desfazem-se duas bases fundamentais do texto do Desidério: a negação da fé como conhecimento e o tratamento da fé como exclusivamente proposicional.
Em relação à primeira «base demolida», ele respondeu-me de um modo muito insatisfatório, embora eu não tenha prosseguido neste ponto por falta de tempo. De qualquer forma, a explicação do Desidério leva a um beco sem saída. Se, como ele pretende «justificar», o conhecimento de que fala S. Tomás para a fé (porque, sim, S. Tomás fala de conhecimento!), só se dá depois da morte, então teríamos que dizer o mesmo para a ciência, porque ali estão comparados e postos em paralelo, os dois, a ciência e a fé. Infelizmente, não tenho tempo de levar este debate até às últimas consequências, mostrando que esta explicação do mesmo interlocutor não tem sentido, a menos que assuma explicitamente que aqui fala de conhecimento científico.
Em relação à segunda «base demolida», expliquei depois por que razão a sua justificação não convence, de modo nenhum. O seu texto passa ao lado do essencial da fé, pelo que a pergunta que dá título ao «post» fica sem resposta.
E voltando ainda ao tema de ser ou não conhecimento, se em Filosofia os argumentos de autoridade valem alguma coisa, e não sendo eu um especialista em S. Tomás, além do que eu posso ver da leitura da
Summa, confio neste ponto mais nos comentários de especialistas do que nas afirmações não devidamente justificadas do Desidério (eu pedi-lhe fontes e citações, que não deu).
Se ele disser que «a fé exclui todo o conhecimento
científico», talvez isso seja aceitável, desde que «exclui» não signifique exclusão mútua, como se fosse impossível ao cientista ser também um homem de fé.
No âmbito estritamente teológico, que não discuto com o Desidério, mas coloco aqui, é ainda mais evidente que a fé inclui o conhecimento. Basta pegar na Bíblia e procurar a palavra «conhecer» em contextos relacionados com a fé, particularmente no Evangelho de S. João. Jesus diz muitas vezes que só o Filho conhece o Pai, mas dá-O a conhecer e quer que os seus discípulos O façam conhecido. Aliás, quem conheça o Filho, conhece também o Pai. É impressionante o número de vezes em que este jogo do «conhecer» aparece neste Evangelho. Basta ler a partir do capítulo 13. O mesmo na 1ª Carta de S. João, onde se diz, entre outros versículos famosos, o seguinte: «Sabemos que o conhecemos por isto: se guardamos os seus mandamentos» (1 Jo 2:3).
O «De Rerum Natura» é
muito bom naquilo que é estritamente científico, bom nas questões que coloca da relação da ciência com outros âmbitos e bastante fraco nas respostas a questões extra-científicas que digam respeito à fé e à teologia, onde às vezes mais parece uma segunda versão do «Diário Ateísta», onde vários cientistas fazem de Dupont e Dupond quando se trata de desqualificar a fé.
Felizmente, havendo espaço para os comentários, sempre vai havendo algum espaço para que o discurso não seja tão monolítico e possa ser corrigido nalguns pontos concretos.
Oxalá insiram alguém de outras áreas do saber (não estou a sugerir teologia!), como algum linguista, que saiba também algum Latim… É que esta «língua morta» deve estar a dar voltas no caixão…
Alef